sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Empirismo

Chacrinha, parafraseando Lavoisier, dizia que na televisão nada se cria, tudo se copia. Isso tanto é verdade que qualquer nova ideia é transformada e repetida à exaustão, revista e sampleada pelas emissoras em busca de manter a fidelização do público, aumentar a audiência e, no frigir dos ovos, sobreviver. Nós, consumidores de mídia no início do século 21, demos o azar de nascer na era dos reality shows. Nossos avós ouviram O direito de nascer no rádio a válvula, nós assistimos ao Big Brother, nossos netos terão, talvez, alguma coisa no estilo Running Man ou Truman Show. Ou, mais provavelmente, consumirão produções específicas criadas por encomenda para seus aparelhos móveis interativos em um nível de personalização tão alto que será preciso rever conceitos de mass-media, relações de consumo, propaganda etc. Algo que, olhando bem, não é exato especulação.

De todo modo esse não é um paper acadêmico, não pretendo discutir tecnologia de comunicação, informação e reprodutibilidade em um blog pessoal. Não fiz isso na faculdade e não vai ser aqui o meu campo de redenção. O título, empirismo, resume a real proposta. Antes, porém, vamos para o tempo presente pensar o Big Brother ou qualquer programa do gênero à escolha. Um senso comum: o ser humano médio tem curiosidade pela vida alheia. Por isso, talvez mais por isso que qualquer outro motivo, existem janelas (e cortinas). A janela, essa que fica na parede, é método primitivo, até certo ponto seguro, ainda utilizado, para se captar informações do mundo externo e, também, transmitir informação. Se chego na janela do meu quarto e o casal do apartamento vizinho está nos dias de amor, magia e sedução, sou culpado por ter visto algo? Seriam eles mais ou menos responsáveis por terem deixado a cortina aberta? Cada um analise a situação a seu jeito, lembrando que o vizinho pode muito bem perceber que está sendo visto e jogar um sapato ou dar um tiro. Conjecturas.

Aproveitando o senso comum, alguém resolveu industrializar o voyeurismo e transportar a janela da parede para a sala de tevê, atraindo um público razoável, anunciantes dispostos a pagar por propagandas até certo ponto espontâneas, e alguns espectadores, eu entre eles, que compram o direito de exercer a observação do alheio em tempo integral. Já passei do estágio de ter vergonha de assumir algo, respondo pelos meus atos. Continuando. Com os reality shows vieram clichês como "isso é um jogo" ou "só quem está lá dentro sabe de verdade como é". Surgiu também a classe dos "teóricos de reality show". Gente que analisa o comportamento do outro, sem necessariamente ter habilitação em psicologia, e que, por vezes, se coloca no lugar daquele outro, dizendo qual seria sua atitude frente uma situação vivenciada no programa. Esse talvez seja outro lado que atraia parte considerável do público: a possibilidade de fantasiar sobre "como seria comigo se eu estivesse ali", dentro de uma experiência "real", na direção contrária das novelas, que por definição são obras fictícias e acabam trabalhando outro tipo de sensação.

Acredito que muita gente concorde com a afirmativa de que teorizar ou fantasiar sobre uma possível atitude frente a determinado acontecimento é totalmente diferente da vivência do fato. Ou seja, por mais que você imagine como será sua reação quando alguma coisa acontecer (uma demissão, por exemplo), só quando aquilo acontece, mesmo assim em função de um sem-fim de variáveis, dá para dizer que "na situação x eu ajo de modo y". Empirismo. Daí o fato de praticamente todos os participantes desse tipo de programa soltarem o famoso "só quem está lá dentro sabe de verdade como é". Afinal, além de conviver com estranhos, existe o clima de programa de tevê, alguma "censura" de não poder falar tal coisa, bronca de diretor, fazer o número dois com uma câmera (ainda que supostamente desligada) em cima etc. Fora a grande frustração de não ser exatamente o esperado. Seja lá qual for o "esperado", o "real" será bastante diferente. Essa afirmativa vale para a vida como um todo.

Chegamos finalmente ao que interessa: a noção de que existem "teóricos" e "participantes" de reality shows, e que estes constituem categorias distintas. Os primeiros analisam a situação e discorrem sobre ela sem necessariamente terem passado por aquilo (alguns ex-participantes comentam edições posteriores dos programas, o que, na linha de raciocínio que apresento aqui, daria a eles maior credibilidade), os outros passaram por aquilo e sabem como é o processo por um ângulo diferenciado. Empírico. Por analogia, dá para transportar teóricos e participantes para outras situações de vida.

Está no plano do conhecimento coletivo que colocar a mão no fogo queima, pôr o dedo na tomada dá choque, comigo-ninguém-pode é planta tóxica, manga com leite não faz mal, chá de boldo cura ressaca. E por mais óbvio que isso possa parecer, precisou de um bendito qualquer morrer comendo comigo-ninguém-pode para comprovar. Pelo menos uma criatura na face da Terra morreu envenenada, afirmo sem fazer pesquisa em lugar algum. Por outro lado, existem coisas que não vão para esse tipo de plano de conhecimento, principalmente por envolverem experiências sensoriais, afetivas ou sinestésicas, que demandam vivência. Sexo, por exemplo. A "primeira vez" é diferente para cada um, não dá para teorizar nem estabelecer regra. Festa de formatura. Casamento. Nascimento de filho. Enem.

Sim, no parágrafo de cima está escrito Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio, que eu fiz. Em resumo resolvi me reinventar, dar uma chance para a vida acadêmica (ou para o destino) depois de um longo tempo, tentar uma carreira nova, e me inscrevi para o curso de direito na UFMG. Por isso fiz o Enem, o exame é a "primeira etapa" do vestibular. Fui um entre três milhões que sofreram a prova, não tive problema algum. Assim como o Big Brother, no Enem o clichê "só quem fez sabe como é" é perfeitamente aplicável. São dez horas de uma prova não "difícil", mas "desgastante", à qual você dedica parte de seu tempo e algum fosfato. Como em toda avaliação, existe uma tensão em torno, a pessoa acaba por inserir seu emocional no processo e existem logicamente reações diversas. Humanos em estado de tensão, experimentação, avaliação, competição. À exceção do intervalo de tempo e do fato de não haver câmeras, o Enem é uma interessante experiência de "reality".

Para os "teóricos", a vivência do Big Brother é algo fácil que eles tirariam de letra. Para quem não fez o Enem (categoria na qual eu me incluía), a prova é algo idiota que qualquer um faz com o pé nas costas. Na verdade faz sim: desde que sentado no conforto do seu lar, com calma, tempo, comida e água. Lá, na hora que vale, só quem foi sabe como é, mesmo. Daí minha imensa frustração quando da notícia de que a prova havia sido suspensa (já cancelaram a liminar, mas o processo ainda não acabou, tudo pode acontecer). Eu me senti pessoalmente desrespeitado por terem pegado meu esforço (licença, sou egoísta), amassado como se fosse jornal velho e jogado no lixo. Entendo que, sim, pessoas se prejudicaram. Que elas devem, sim, ter uma nova oportunidade. É justo e a mim não incomoda. Mas é preciso mesmo que, para se fazer justiça, todos tenhamos de passar pelo desgaste uma vez mais? Qual o grau de compreensão da pessoa que decidiu isso? Em algum momento foi considerado que, além de estudantes do ensino médio, havia trabalhadores que faltaram no emprego, pessoas mais velhas que precisam da nota para uma colocação profissional, enfim, uma diversificada gama de cidadãos que investiram tempo útil e dinheiro naquilo? A decisão, arbitrária, veio de um "teórico". Que não sofreu aquela experiência e, talvez, não tenha apreendido bem a importância de sua decisão no campo emocional e profissional de três milhões de pessoas, nem todas elas adolescentes na faixa dos 18 anos.

Em uma situação ideal, no futuro, boa parte dos profissionais na ativa terão passado pelo Enem e serão mais condescendentes com erros. Que, por sorte e por sermos todos sujeitos a falhas, acontecerão. Do ponto de vista de quem "sofreu" a prova posso dizer que não há motivo para cancelamentos. Mas quem sou eu, mero "participante", para discutir com um "teórico", não é verdade? Por enquanto esperamos. Eu e meus colegas de cursinho. Em tempo: agora estudo à noite, razão do grande intervalo entre textos. Até breve!

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Advertência

Os textos contidos nessa página refletem a observação e interpretação de momentos específicos. Reservo-me, como qualquer ser humano, o direito de ser incoerente, passional, depressivo e por vezes cruel se assim o couber. Sou, principalmente, um observador da vida, um "colhedor de absurdos", como venho me chamando. E por vezes pego recortes que, dependendo do leitor, podem soar como verdadeiras punhaladas.

Escrever é um ato de rasgar, por vezes. Para ficar escrito o papel precisa ser violado pelo instrumento. Às vezes duro, às vezes prazeroso, por vezes dispensável. Mas ocorrido, acontecido.

Segunda advertência: não apago meus textos. Porque, mesmo possível, seria como tentar reescrever o passado. É uma artificialidade que a mim não cabe. Interpretem como quiser.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Exercício de memória : personagens

Alguns amigos postaram em seus perfis do Facebook esses últimos meses uma brincadeira dos 15 mais. Os 15 livros, 15 filmes, 15 músicas que marcaram a sua vida, fizeram chorar, vão ser sempre lembrados. O desafio, digamos assim, era retornar a mensagem em 15 minutos, compartilhando a lista com o amigo e passando para frente a "corrente" (na falta de um melhor termo). Interessante mas não participei de nenhuma brincadeira.

Em primeiro lugar porque sou bobo, chato e feio. Depois porque não tem como eu revirar meu baú mental e pinçar, em um espaço de tempo tão reduzido, 15 aleatoriedades realmente representativas. Mas, sendo mais chato ainda, como gostei da ideia resolvi subvertê-la e preparar uma lista de personagens (reais ou não) que marcaram minha vida. Para o bem e para o mal. Devem ser 15, mas talvez falte (ou sobre) algum. A ordem de entrada é totalmente randômica, até pensei fazer ordem alfabética, mas vou deixar a memória mandar. Clique no nome da personagem para vê-la no Youtube.

O espelho mágico da Branca de Neve
Começando de cara com o espelho, um dos coadjuvantes mais interessantes, em minha modesta opinião, do cinema de animação. Nem bom nem mau, o espelho diz a verdade. E filosofa vez por outra. Fora que não tem medo de responder à rainha má que existe alguém mais belo no reino. A rainha, mui respeitosamente, ouve e em momento algum dá uma pedrada no vidro e faz o espelho virar mil.

Malévola
Ainda no cinema de animação, Malévola é a vilã e não se discute. Pérfida e cruel como deve ser, irritada, irritante e irritável, musa maligna da minha geração. Bia Falcão aprendeu com Malévola. Sue Sylvester aprendeu com Malévola. Eu... bem, eu também!

Cassandra
Personagem de Eurípides, personagem da Guerra de Troia, pitonisa, enlouquecida e amaldiçoada. Cassandra foi condenada à privação da confiança. Ela sempre dizia a verdade, e nunca acreditavam nela. Para representar a personagem da peça em que atuei, escolhi a interpretação de Geneviève Bujold no filme As Troianas, de 1971. Com Vanessa Redgrave no papel de Andrômaca e Katharine Hepburn arrasando como Hécuba. Taltíbio, personagem que interpretei no teatro, está também no trailer do link.

O Advogado
"Sim, eu sou um homem e choro. Um homem não tem olhos? Não tem também mãos, sentidos, inclinações, paixões? Porque é que um homem não devia chorar?" Estudei O Sonho, de August Strindberg, aos 15-16 anos. Seria uma peça que eu remontaria hoje, e faria exatamente o mesmo personagem: o Advogado. Arquetípico, não? E pensar que na época, lá no comecinho, queria mesmo ser o Oficial. Foi O Sonho que me levou a Bergman, e à personagem abaixo.

Ismael Retzinsky
Ismael é um garoto mantido num quarto fechado. Extremamente sedutor, assim como o pequeno universo em que vive. Andrógino, é interpretado por uma atriz (Stina Ekblad) em Fanny e Alexander. Se eu pudesse em meu leito de morte escolher uma cena de filme para assistir seria, sem dúvida alguma, essa.

Don Vito Corleone
A descrição mais difícil de ser feita sem cair em clichê. Então resumo assim: canceriano. Pronto.

Bacana
Qual menino da minha idade não queria ser o Bacana? O personagem, como não poderia deixar de ser, estigmatizou o Jonas Torres de um jeito que o moço foi virar marinheiro nos EUA. Mas o Bacana era bacana demais! E a Armação Ilimitada tinha, acho, algum roteiro. E tinha Zelda, Ronalda, o Chefe...

Stalker
Stalker foi um filme que só assisti uma vez, e acho que provavelmente dormi em parte dele. Produção típica do Tarkovsky, clima onírico com longas tomadas, o principal do personagem Stalker é mesmo o nome. Toda vez que alguém menciona o termo "stalker" (extremamente comum nos dias de hoje) são essas imagens que me vêm à cabeça na hora.

Fania Fenelon
A amarga sinfonia de Auschwitz traz Vanessa Redgrave (de novo ela) com a cabeça raspada interpretando uma prisioneira judia que sobrevive a Auschwitz por causa da música e de uma orquestra de presidiárias. A Fania real não gostou muito de ter sido interpretada pela Vanessa. Pelo que lembro do filme, foi um dos que mais chorei em toda minha vida.

Eduardo II e Gaveston
Referência ao rei da Inglaterra, o filme de Derek Jarman ainda me marca até hoje. Não tenho como escolher apenas um do casal gay real. Mas a cena mais marcante do filme, para mim, é o menino maquiado, de brincos, sobre a jaula do rei.

Macunaíma
Consigo descrever exatamente a noite em que assisti a esse filme na casa da minha mãe e fiquei chocado com o parto do Macunaíma. Não lembro se para a faculdade (dela) ou para a escola (minha), Macunaíma apareceu lá em casa para ajudar na leitura de um livro. Até hoje não gosto quando o Grande Otelo vira Paulo José.

Mary Matoso
Das melhores personagens da Patrícia Travassos em uma novela que marcou a minha adolescência. Dessas coisas de querer chegar em casa logo só para ver Vamp. Na memória a cena em que ela, de posse do comando da rádio da cidade, obriga o lugar inteiro a ouvir Recuerdos de Ypacaraí na sua linda voz de gralha velha.

Baronesa Eknésia
Se a telenovela é a educação sentimental do brasileiro, a Baronesa com certeza é a melhor professora. De brinde a Rainha Valentina, em uma interpretação impecável da Tereza Rachel.

Beato Salu
Eu tinha medo do Beato Salu, sabia?

Perpétua
Para encerrar com uma vilã. Figura inesquecível com a misteriosa caixa branca, na qual ela guardava o membro decepado do falecido marido. A minha mãe me proibiu de assistir a Tieta, porque chamei a emprega de fedaputa. Por isso tenho um lapso de memória de certos trechos da novela.

A lista pode aumentar, só que vou parar aqui. Afinal são 15 apenas.

*Update: pouco tempo depois de eu postar vi que o link de A amarga sinfonia de Auschwitz foi "banido" do Youtube e não achei outro. Deixei a foto da Vanessa no lugar.

sábado, 16 de outubro de 2010

Sobre o amor: re[in]flexões

Uma das grandes mentiras vendidas em loja é o jogo de cama de casal 4 peças: dois lençóis, duas fronhas e só. Jogo de cama (de casal) deveria ter no mínimo um lençol extra, para evitar que um roube o lençol do outro no meio da noite. Não sei como era no tempo de nossas avós, mas tenho cá comigo que essa ideia de duas pessoas sob um mesmo pano deve ter nascido com o conceito de amor romântico, aquele inventado em algum começo de século.

Vejamos a tradição amorosa anterior à literatura romântica – aquela com amores impossíveis, tragédias arrebatadoras e melodramas de cortar o coração, escritos por Shakespeare, Tomás Gonzaga (o da Marília de Dirceu), Glória Magadan e Janete Clair, entre outros.

Amores se arranjavam, amores eram desvinculados da instituição casamento. O ato de casar era visto como negócio que, e principalmente, por ser negócio, durava toda uma vida. O convívio entre os arranjados viria a tornar a relação, se não sólida, suportável na maioria das vezes. Assim como nos dias de hoje, relacionamentos abusivos existem, e aqui quero enquadrar a questão apenas da maioria, deixando para dramaturgos a função de explorar melhor as donzelas fugidas com cavaleiros e as escravas raptadas tornadas senhoras de engenho.

Casamentos [não amores] davam certo, duravam. Amores, como a expectativa de vida, eram aventuras de curto prazo e algumas lágrimas.

Até que alguém resolveu dar nome e sentido ao conceito de amor que temos hoje: esse que passa na novela e termina quase sempre em final feliz. Também dá as cartas no que chamamos comédia romântica, nas literaturas de banca de revista (Bianca, Sabrina, se é que ainda vendem isso), na programação do rádio. Tudo ou quase fala de amor, da expectativa do amor, da realização do amor e dos felizes para sempre sobe o letreiro.

A questão, claro, não é o encantamento inicial. Vive-se um tempo em que casamento continua sendo negócio [não duvide], porém com uma margem de risco superampliada e a inevitável sensação de que vai dar errado a qualquer momento. Por que seria, pergunto.

Se temos maior acesso a informação, maior possibilidade de escolha [rá, maior possibilidade implica também em mais chances de erro] e principalmente liberdade de escolha, qual a razão de um relacionamento por definição livre, iniciado pelo conceito externalizado do Amor, ou seja, nos moldes da educação sentimental pregada pelos melodramas, se somos pessoas privilegiadas por conseguir reunir as condições idealizadas por uma gama de autores ditos românticos, qual a razão para tudo de repente ir por água abaixo?

Pergunta que respondo assim: pela ampla falta de respeito próprio. Entenda, não digo que as pessoas não se respeitam mais umas às outras, talvez até se respeitem mais do que deveriam. Porém esqueceram-se de se dar o respeito. Eu mesmo, mea culpa, assumo, sou um intenso desrespeitador de mim. Não levanto limites, não imponho barreiras e, grave erro, aceito muita coisa sem discutir. Conviver é ceder em partes, com algum tipo de contrapartida. Mas quando se cede demais é como aquela famosa historinha: anteontem mataram o gato e não fiz nada, hoje voltaram e queimaram a minha casa, violentaram minha mulher e eu... Permaneci fazendo nada.

Não há mais nada o que se fazer. Apenas dar chance ao fim e a um possível recomeço, seja qual for. Recomeçar é sempre bom e necessário. Sem nunca, claro, abandonar o que se aprendeu. Por agora tenho uma grande vontade de fim. E deixo uma dica para quem for montar casa: compre um lençol extra para todo jogo de casal. Por ora, agora, fim.

sábado, 25 de setembro de 2010

O pato, a morte e a tulipa

"Viemos ao mundo para amar a vida."

Pensamos ser difícil ensinar Filosofia a crianças... Talvez não o seja. Talvez seja fácil por demais. Porque as crianças têm uma imensa capacidade de assimilação, de absorção daquilo que a elas é interessante. Difícil, então, não deve ser ensinar. Filosofia, Astronomia, Matemática, Literatura, não importa, a criança é capaz de aprender. Desde que, claro, você desperte a sua atenção e a mantenha interessada. Só que isso, prezado, é tarefa de profissionais.

O pato, a morte, e a tulipa em questão não são – mas o são – os personagens dos livros de Erlbruch. E não o são porque oficialmente não os li. Até tentei, não tinha na loja. Mas são, vieram dos livros e subiram no palco, delicadamente apropriados pela Érica [Lima]. Pato e Morte estão dentro da história que a Érica quer contar. Que é uma história sobre contar histórias. Ou, ainda, sobre como encantar as crianças.

Confesso que, enquanto ator, sou um clown frustrado. Apesar de nunca ter trabalhado ou desenvolvido meu clown, [acho que] sei que o meu personagem vai parar na linhagem dos tristes. Imagino meu clown como aquele palhaço horrível das gravuras da década de 1970. Assistir a um trabalho de clowns, para mim, é exercício que demanda paciência, desprendimento e desapego.

Mas que história é essa? [a peça de teatro] começa justo com dois clowns. Dois atores totalmente seguros de seu trabalho, e eu pensando em quanto de pirueta e acrobacia, e morrendo de inveja do condicionamento físico dos dois, e trabalho de cena ia ter de ver. Até que.

Até que tudo deixa de ter importância e, assim, na história de dois clowns contando uma história sobre contar histórias – que, juro, pensei que ia ter de passar óleo de peroba no rosto, fazer cara de paisagem e dizer que "é interessante" –, de repente a gente vê que o circo todo é montado para – perdão o trocadilho infame – cairmos como patinhos na rede armada pela autora [a Érica Lima], diretores [Marcelo Xavier e a própria Érica], elenco [Marcus Vinícius e Rubens Ramalho]. Somos plena e ludicamente encantados, adultos e crianças da plateia, para mergulhar em águas um pouco mais profundas. Como marinheiros que ouvem o canto das sereias.

Uma vez nós, público, devidamente rendidos, os atores nos têm na palma da mão. E abusam, dando vida a um Pato – que de pato, fisicamente, só tem o nome – e à inevitável, aquela que está sempre ao nosso lado (e por isso nunca se atrasa), a Morte. E nos fazem presenciar esse encontro, um tanto quanto inusitado, e a refletir sobre o sentido da vida. Cada qual de seu modo, adulto, criança, pato, somos levados a pensar na grande questão de para quê (ou por que) vivemos. E a resgatar a lembrança da finitude da vida. Tudo com uma grande (e abusada) delicadeza...

A Érica [Lima] deveria escrever mais. Deveria atuar mais também, mas isso fica entre eu e ela. Mas que história é essa? está pronta para começar. Se eu fosse você aproveitava a jornada... até mesmo sem levar criança alguma. Afinal, o espetáculo definitivamente não é só para elas.

Mas que história é essa?, uma produção do grupo Real Fantasia, está em cartaz no Galpão Cine Horto, dentro do projeto "Semana da Criança no Teatro". A estreia é hoje, dia 25 de setembro, às 17h. Eu sou chique, a Érica passou lá no meu trabalho e me deu um convite para a pré-estreia. Se não der tempo de você ir hoje, tem amanhã também, e nos dias 2 e 3 de outubro, no mesmo horário. A entrada (inteira) custa R$20.

E a tulipa? Bem, a tulipa...

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Leitura dinâmica

Preciso aprender a
escrever parágrafos
menores

(estou para desenhar esse haicai no meu caderno há 15 dias)

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Um pouco de história da arte

O ano era 1970, abril. Eu, logicamente, só viria a nascer alguns anos depois. Meus pais, vizinhos que brigavam desde a infância, já se conheciam, bobear até namoravam, não sei. Aqui em Belo Horizonte acontecia uma exposição chamada Objeto e participação, com uma manifestação paralela chamada Do Corpo à Terra. Eram os anos de ferro, o ecologicamente correto ainda não estava em alta, e os artistas mais engajados aproveitavam o contexto social para se manifestar como podiam.

"Objeto e Participação consistiu numa exposição coletiva, realizada no saguão do Palácio das Artes com trabalhos experimentais, abertos à participação do público, de Franz Weissman, Tereza Simões, José Ronaldo Lima, Humberto Costa Barros, Guilherme Vaz, Carlos Vergara, Ione Saldanha, Odila Ferraz, Cláudio Paiva, George Helt, Orlando Castaño, Manoel Serpa, Manfredo Souzanneto, Terezinha Soares, Yvone Etrusco, Nelson Leirner e Marcelo Nistche. Do Corpo à Terra foram propostas conceituais realizadas durante três dias no parque e nas ruas da cidade. Os artistas não apresentaram obras, mas realizaram várias ações: Cildo Meireles queimou galinhas vivas em homenagem ao sacrifício de Tiradentes; Dilton Araújo cercou o Parque Municipal com uma corda; Lotus Lobo plantou sementes; Luis Alphonsus queimou uma faixa de pano de 30 metros; Eduardo Ângelo rasgou vários jornais velhos; Luciano Gusmão fez um mapeamento do Parque, dividindo as áreas livres das áreas de repressão; [Artur] Barrio jogou trouxas de carne e osso no Ribeirão Arrudas; Lee Jaffe executou a proposta de Oiticica, desenhando uma trilha de açúcar na Serra do Curral e eu fiz apropriações fotográficas de vários locais da cidade. Do Corpo à Terra foi a última e mais radical manifestação coletiva da vanguarda brasileira" (Depoimento de Frederico Morais a Marília Andrés Ribeiro no livro Neovanguardas: Belo Horizonte – Anos 60. Belo Horizonte: C/Arte, 1997).

A parte em que o Cildo Meireles queimou galinhas vivas foi grifada por mim. Não sei até que ponto queimar galinha era normal e aceitável na década de 1970, mas lembro o choque que tive quando assisti a Marília falando isso como se fosse a coisa mais natural do mundo. Como se ele estivesse descascando uma cebola. Ó gente, ele queimou galinha mas era arte. E ok, era arte mesmo, havia uma proposta por trás daquilo tudo que tinha muito a ver com o estado da sociedade civil da época. Se lembro bem da aula, apesar do choque que deve ter causado, não tivemos manifestações de populares pulando no fogo para salvar as galinhas da fogueira. Galinhas D'Arc. Quarenta anos depois Cildo é um artista plástico bastante conhecido, só deve queimar galinha no forno de casa, e virou verbete na Enciclopédia Itaú de Artes Visuais. Na onda do politicamente correto, a queima de galinha está disfarçada sob o título da obra (Tiradentes - Totem-monumento ao Preso Político).

Obviamente uma manifestação artístico-política desse nível não tem lugar na sociedade atual. Com internet e globalização na jogada, um pobre coitado costa-riquenho pretendente a artista, Guillermo Habacuc, lá na Nicarágua, caiu na besteira de, em pleno 2007, pegar um cachorro de rua e prender dentro de uma galeria de arte sem água nem comida até o cachorro morrer. O erro do Habacuc (atenção: eu tenho duas cachorras e a minha vontade é sim de pegar o tal artista e deixar preso numa corda até morrer de fome e sede, só que a sociedade já o execrou o suficiente) foi de data e, principalmente, de falta de inteligência. O pateta achou que com pleno PETA e movimentos de defesa dos animais na parada a sua arte (e ok, é arte sim, mas uma arte totalmente fora do contexto mundial atual – e me reservo o direito de não saber nada sobre a situação política nicaraguense quando da instalação) seria aclamada. Caiu no esquecimento e provavelmente a próxima obra "do gênero" que ele fizer vai acabar em paulada na cabeça (dele). Há versões e versões para a história do cão. Pesquisando links para esse texto vi, no G1, que o cachorro teria fugido e só ficou sem alimentação durante o período da instalação. Enfim, o caso do cachorro é apenas elemento ilustrativo para o parágrafo seguinte.

29ª Bienal de São Paulo, 2010. Gil Vicente apresenta a série Inimigos, desenhos nos quais ele se representa matando líderes mundiais, como o Papa, a Rainha da Inglaterra, o presidente Lula, George Bush e por aí vai. Desenho, traço. Nem dá para dizer que é hiper-realismo, as imagens são basicamente grafite sobre papel. Instaladas em um espaço criado para se pensar a arte, para se mostrar arte contemporânea. Não tem galinha queimando, não tem cachorro passando fome. Mas tem, claro, polêmica (também conhecida como o ato de falar mal para que uma coisa besta vire sucesso). Entraram com um recurso no Ministério Público, alegando que a obra faz apologia ao crime e deve ser retirada da Bienal. Será que deve mesmo?

Fazendo uma pequena retrospectiva (recente) da arte cinematográfica, vou elencar dois títulos: Dogville e Bastardos Inglórios. Dois filmes, cada um do seu jeito, que levam o espectador a um processo catártico, em um final coroado com assassinatos brutais embutidos em cenas maravilhosas que me fizeram sair do cinema de alma lavada. Mataram Hitler na ficção. Mataram todos os habitantes de Dogville, bem feito, eles mereciam. Daí me pergunto, deveria o Ministério Público intervir, alegando que os filmes fazem apologia à violência? No cinema nacional, o filme Tropa de Elite encerra com um policial dando um tiro na cara de um bandido rendido. Isso não é crime também? E qual a diferença entre imagem em movimento e grafite sobre papel, alguém me explica? Copiando o blog da Barbara Gancia:

"Que [Flávio] D’Urso [presidente da OAB/SP que entrou com a ação no MP] ache impróprias imagens mostrando o artista pronto para executar figuras públicas como a rainha Elizabeth, FHC e Lula ou diga que a obra incita a violência não significa absolutamente nada, tem efeito prático zero, não vai dar em nada, não traduz o desejo da sociedade, revela apenas a ignorância e a falta de compreensão de uma pessoa que não estudou o suficiente para se manifestar sobre arte."

Eu, brincando de ministro, daria ao proponente a seguinte resposta:

"Prezado senhor, agradecemos o seu pedido. No momento, porém, temos mais o que fazer e não demonstramos interesse em avaliar obra de arte. A competência dessa avaliação cabe à curadoria da exposição, que deve ter lá seus motivos para pendurar os quadros. Reclame com eles se não gostou, faça uma petição na internet, passe uma corrente para os amigos, diga para ninguém entrar ou, como já virou moda no Ibirapuera, pegue uma lata de spray e piche os quadros. Só não reclame depois se for preso. Da nossa parte, cremos que o MP não tem competência para instituir censura de qualquer espécie, e é perda de tempo censurar aquilo que está rodando a torto e a direito na internet exclusivamente por sua causa. Caso haja interesse em ocupar seu tempo ocioso com alguma atividade proveitosa, gentileza entrar em contato com a Maria, a atendente do cafezinho. Temos xícaras e pires a lavar. Sem mais."

terça-feira, 21 de setembro de 2010

60 Minutos (voo solo em três atos)

Ato 1: 2008
No meio das atividades que desempenho todos os dias está o papel de professor de inglês. Não sei se gosto. Gosto de dar aulas, é bom. Porém como não sou muito chegado em gente burra, a minha paciência enquanto professor fica bastante reduzida. Entenda: ninguém tem obrigação de saber inglês, aulas existem para ensinar. Só que existem professores e professores e, se tenho o dom, deve ser mais para administrar grupos de discussão. Ou não, até porque, paradoxo, opto sempre por trabalhar com iniciantes. Também não gosto de corrigir prova, preencher diário de classe, toda aquela burocracia que acompanha o ato de lecionar em si.

Sem muita viagem, esse é um texto em três atos, ainda estamos no segundo parágrafo e eu não disse a que vim, enquanto professor vez por outra a gente tem treinamentos, eventos geralmente patrocinados por alguma editora de livros didáticos da área, nos quais a gente vai para ouvir alguém falar em inglês sobre como dar aulas de inglês, receber propaganda, concorrer a um kit de livros, encher a barriga no coffee-break e, claro, mostrar aos outros professores concorrentes o quanto você sabe falar em inglês. Rebelde como sou, geralmente nesses eventos respondo em português a qualquer idioma que falem comigo.

Em 2008, o último dos eventos a que fui, um autor paulistano especializado no ensino para crianças comparava o processo de aprendizagem a uma corrida. Ilustrou a fala com fotos dele mesmo participando de uma prova de rua, imagens do homem devidamente trajado para a competição, se alongando para a prova, durante a corrida e, claro, chegando no final. Tirando o mico que o cara pagou, em algumas fotos ele fazia caras e bocas de ator de cinema mudo, achei a ideia interessante. Quem participa de provas de corrida (amadores, deixemos os corredores profissionais para lá) sabe que o objetivo é concluir a prova respeitando os próprios limites. Por isso todo mundo ganha medalha. Ensinar um idioma é dar a pista para a pessoa correr dentro de sua capacidade. Importante é o percurso; a chegada é consequência.


Ato 2: 2009
Comecei o ano de 2009 com 101 quilos e terminei com 79. Não se animem, ganhei peso depois disso e tenho um longo caminho em busca dos 75 ideais segundo a matemática. No começo do ano não dei aulas, por isso não frequentei palestras. Dei um tempo para cuidar de coisas básicas como emagrecer, diminuir o colesterol, a capa de gordura e evitar um diagnóstico precoce de diabetes. Enfim: manter-me vivo com um mínimo de decência e sem dar trabalho a ninguém.

O processo de retomada da saúde física envolveu dieta, controle médico e exercícios. Tive de colocar na cabeça que academia passaria a fazer parte da minha rotina pelo resto da vida, que chá verde não é o fim do mundo (beba quente: frio ou morno amarga horrores), que produtos integrais são nossos amigos e que não, não pode comer doce todo dia. Também tive de enfrentar alguns monstros como peitoral voador, elipticon, banco extensor, remo e graviton. Depois da tortura medieval dava para pelo menos ligar a esteira e, como sou um rapaz comportado, o povo da academia me deixava em paz até mesmo para ficar mais tempo que o permitido para todos.

Foi nessa época que aconteceram eventos, não lembro exatamente em que ordem. Um dos estagiários da academia me viu na esteira, disse que eu tinha “uma boa arrancada” e que deveria correr na rua. Eu ri, não muito obrigado. Outro estagiário resolveu criar um grupo de corrida e me chamou, não muito obrigado. A minha médica, Dra. Ângela, disse que eu devia correr na rua, eu ri de novo e disse que ela estava louca. Uma amiga minha começou a correr e vivia me chamando e eu, não, não tenho treinamento para isso. Mas uma vez tentei fazer uma inscrição: esgotada. Interpretei como sinal de não é para mim, principalmente depois de ouvir dentro de casa que não tenho condicionamento físico para isso, que minha família sofre do coração e que eu poderia ter um troço no meio da corrida, cair duro e morrer.


Ato 3: 2010
No segundo semestre de 2009, mais ainda no começo desse ano, voltei a dar aulas toda noite ou quase. Hoje meu horário útil enquanto professor, de segunda a quinta, encerra às 20h. Sábado de manhã até o meio-dia. Com isso dei uma desandada geral na academia, na dieta, voltei a ter o chocolate amargo como amigo e companheiro de colégio. Resultado engordei. Fim, vamos recomeçar. A Dra. Ângela até entendeu algumas de minhas razões mas o fato real é que dei mesmo uma desanimada. Acontece.

Mas, como cada um tem seu tempo, resolvi que não tenho bolso para ficar trocando de guarda roupas toda vez que mudo de corpo e que eu tinha de novo de tomar vergonha na cara e deixar a moleza de lado. Retomei, em parte, a academia, indo sempre que dava. (Um aparte: o mais difícil de ir à academia não é fazer os exercícios e sim romper a barreira que separa o seu lugar de origem, casa, trabalho, da academia propriamente dita. Uma vez lá dentro, acredite em mim, você faz tudo normalmente.) Como fiquei parado um tempo, a professora me deu "bomba", voltando para os aparelhos básicos e alternando com atividade aeróbica como se fosse um circuito. Praticamente não posso parar muito além dos 20 segundos de intervalo entre uma série e outra, dói pra caramba, mas é preciso fazer o corpo voltar a lembrar que ele se mexe e não fica só jogando fazendinha nas horas vagas.

Conversando com a mesma amiga que vivia me chamando para correr na rua, ela tanto insistiu para eu participar de uma prova (revezamento) com ela, que enfim cedi. "Põe logo meu nome nessa coisa então e me dá sossego", falei. 5 milhas, ou 8 quilômetros. Em casa foi o caos: você vai morrer, tem de preparar mais um ano, vai cair duro no chão, não vai dar conta. Fiquei mesmo com medo, sou um cagão. Mas fui. Ok, fui porque bateram uma aposta que eu não ia, e quer me fazer fazer alguma coisa é dizer que eu não vou. Teimoso, eu? Imagina.

Domingo passado acordei seis da manhã. Seis e meia na rua, carona pro local da corrida. Que começou as oito, mas como eu era o número dois tive de esperar minha amiga terminar a primeira parte do percurso, pouco mais de uma hora. Nove e dois lá estava eu com uma rua pela frente, me orientando exclusivamente por um tanto de cavalete e fita zebrada. Com música no ouvido, um podcast que baixei na última hora (duração: 1h40, achei que dava para acompanhar a corrida toda sem mudar de faixa), e meus tênis. Só. Correndo. Com o vento frio na cara. E achando bom.

A foto comprova: corri. Gostei. E como estou escrevendo dá para deduzir que não morri. Hoje fui na Dra. Ângela com a medalha (todo mundo que termina a corrida ganha medalha, lembra?) e ela, toda feliz, falou para eu fazer a volta da Pampulha ano que vem, a louca. Por enquanto vou devagar. Dia 23 de outubro tem a night run, inscrevi para os 5km. Três a menos que domingo, achei melhor assim. 10km é muito para os meus atuais 88kg. Enquanto isso vou treinando, não posso fazer feio. Coisa interessante é que meu rendimento na rua foi maior na esteira: 8km em quase 60 minutos. Achei que fosse ser diferente. Sobraram 40 minutos do podcast.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Cría Cuervos

Blogs. Lugares bons para se permanecer exposto a quem não quer, e esconder os escritos de quem realmente interessa. Lembro que quando comecei meu antigo blog de regime – já comentei isso antes – passeei por outros similares e vi que tudo parecia livro de autoajuda. Eu hoje pesei, emagreci 100 gramas, e rios de comentários elogiando. Eu hoje estou triste, porque pesei (de novo) e engordei 200 gramas, e rios de comentários dando força. Lembro bem que tive de parar de ler aqueles blogs para não ter bulimia nervosa, de tanto enjoo que me deu. E para não escrever para as mulheres pelo amor de deus não se pesem de 10 em 10 minutos.

Optei por descrever fatos: fazer regime é uma porcaria, chocolate é bem mais legal mas como era ou emagrecer ou morrer e eu estava gostando de viver resolvi fazer dieta. Passou? Não, gente como eu vai viver de regime, mas agora importa menos e quero pensar coisas além. Ontem a intenção era tentar ser mais leve. Textualmente falando.

O que não vai ocorrer por agora. Portanto, se você quer mensagens positivas e coisas fofa, procure por fotos da Anne Guedes, clicando nesse link.

Limites e traumas. Por volta dos 17 anos cometi um grave erro. Tenho, desde 1995, uma conta no Banco do Brasil. Na época com um limite de R$500 que, por conta de um cheque pré-datado fora de hora, mais um depósito que não foi feito no dia certo, estourou em um real. Isso, eu ultrapassei o limite do cheque especial em R$1. Foi esse o erro? Não. E se eu contar que uma tia minha, na época, trabalhava no banco, ficou sabendo por sei lá que motivo, e num aniversário, festa de família, me passou um sabão em público porque eu passei do limite do cheque? E se eu contar que o meu erro foi não ter ido ao banco na segunda-feira seguinte denunciar? Pois é.

Esse erro de não ter denunciado a minha tia ao banco custou caro. Dá-se a liberdade, hoje eles chegam e cortam um pedacinho, amanhã arrancam seu braço e reclamam depois de arrancar sua cabeça fora.

Moro em BH desde 1992, e sempre tive de ceder meu quarto para uma visita: essa mesma tia. Ela chegava, eu tinha de sair do quarto. Todos os outros não, dormiam (dormem) na sala... Durante uma crise de família (coisas do ápice da decadência pela qual passamos fim dos anos 1990), essa mesma tia chegou a gritar comigo que "os homens da família não serviam pra nada e só faziam coisa errada". Ponha "dinheiro" no contexto da afirmativa. Nesse dia tive meu primeiro ato de revolta (lembrei imediatamente da cena do banco), e fui embora para a casa da minha mãe, outra cidade, sem avisar. Mas só. Puseram panos quentes e deu-se como se nada tivesse acontecido.

A coisa começou a ficar "menos simples" quando, uma vez, eu estava sozinho aqui na cidade (para quem não sabe moramos eu e outra tia, dividimos as contas, mas a família tem a chave de casa) e eu soube en passant que essa mesma tia (sim, é a mesma mesmo – a que, como minha mãe fala, construiu uma casa imensa sem quarto de hóspedes) viria para Belo Horizonte. Alguém me avisou? Não. Deixei o seguinte comentário: que ela chegue comigo fora de casa. Porque a porta estaria trancada a ferro por dentro e, se alguém tentasse entrar, eu ia chamar a polícia. Meia hora depois recebi um cordial telefonema avisando que visitas iriam chegar.

Nada contra visitas, a propósito. Adoro. Muito principalmente quando elas avisam que virão e dá tempo de arrumar a casa, colocar alguma comida na geladeira, fazer um bolo, essas coisas que só quem é de Minas vai entender.

A falta de limites durou até janeiro de 2009 (estando eu, portanto, aos 31 anos). Cheguei do cinema e estavam, minha tia e a filha dela, dormindo no meu quarto. Assim: fui pra rua, voltei, tinha gente no meu quarto. Não sei se foi a idade, não sei se era a primeira semana do regime, as dores no corpo da academia, o fato de eu estar com cem quilos, ou quinze anos de revolta no meio do caminho. Liguei a televisão, duas da manhã, bem alto. Bem, bem alto. Comecei a gritar, bater porta, como se estivesse doido ou bêbado (não bebi, era sessão meia noite de filme e eu tinha começado a tomar fluoxetina já). Literalmente urrava. Até que ela levantou, tirou a filha e saiu do quarto, e fui dormir (metaforicamente, não preguei o olho de tanto ódio) na minha cama.

Dia seguinte meio que fui "forçado" a pedir desculpas. Mas desde então meu quarto é meu, só meu, mesmo agora eu dormindo mais fora de casa do que nela. Demorou tempo demais para eu começar a justificar que não sou como "os homens da família" e não tenho mais 14 anos há muito tempo. Hoje a gente se respeita. Como comentei com uma amiga ontem, lá em casa não somos o tipo de pessoa que fica anos sem se falar por nada. A conversa com ela gerou todo esse texto levíssimo de hoje. Que por sua vez me lembrou de uma coisa: eu preciso ensinar a alguém, do meu jeito, que é preciso, sim, respeitar os mais velhos e que não tem jeito de viver sem engolir um sapo ou dois. Mas que não devemos nunca, nunca mesmo, deixar de denunciar, na hora, se alguém quebrar seu sigilo bancário numa festa.

* O título do post é inspirado no filme do Carlos Saura (1977), que por sua vez tem o título baseado na expressão cría cuervos y te sacarán los ojos. Nada mais adequado. Afinal, "não entendo por que dizem que a infância é a época mais feliz na vida de alguém"...

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Para fazer sucesso: restart

Coisa que faço pouco, pouquíssimo, é depois de um tempo reler o que escrevi. Geralmente digito, corrijo o texto, corto, reescrevo o quanto quero e publico. Publicou? Corro uma breve leitura para ver se não passou algum erro de digitação e – principalmente – se tem algum problema com as aspas [coisa de quem escreve no Word: quando passamos para o blogger as aspas tipográficas ficam horríveis, aí eu troco tudo por aspas normais]. Ler de novo, meses depois, não. Geralmente tenho vergonha dos meus textos.

Só que: 1. Cismei [isso é cisma, ninguém me cobre nada] de juntar algumas coisas que tenho por aí e ver se dá alguma encadernação e, com isso, 2. Fui reler escritos aqui do blog. Cheguei a uma conclusão aparentemente óbvia: estou sério demais. Não que eu tenha de parar um linha de pensamento para contar piada. Não que eu saiba contar piada. Duas coisas que nunca me deixem fazer em festa são contar piada e cantar. A menos que precise terminar o evento mais cedo.

Sério demais por uma pá de fatores, desde o trabalho (sério) até o dia a dia (mais sério). Verdade seja dita, minha cara amarrada acabou passando para cá, disfarçada sob uma pretensão de seriedade. Um dos elogios que recebi, esse não esqueço, saiu naturalmente em uma mesa quando disseram, ainda nos tempos do blog de regime, que pareciam estar me ouvindo falar enquanto liam. Lá, mais que cá, os textos eram bastante espontâneos. Até porque não dá para não ser espontâneo quando se fala do trauma que é um peitoral voador.

Enfim. A conclusão é essa: estou sério demais. E quando fico sério demais fico pseudo demais. Pseudo inteligente, pseudo interessante, pseudo qualquer coisa menos eu mesmo, o que é, rasteiramente falando, ruim. Então decidir dar um pequeno reboot e iniciar tudo de novo, de outra forma. Não vou apagar texto nenhum, fica tudo aí, porém quero deixar de lado preciosismo, perfeccionismo, ismos, e essas coisas que a gente põe no texto e dá uma maquiada para os outros lerem e acharem até que você é capaz de pensar.

O que está escrito daí abaixo não é um monte de mentiras. Só é, vamos dizer assim, algum tipo de reflexão que fez sentido naquele momento mas que, se eu fosse seguir por esse caminho, ia ficar mais rabugento e mau humorado do que já sou. De Groucho Marx já basta a minha pessoa. E de pensamento duro basta aquele de todo dia. Quero tentar algo mais leve, se é que ainda dou conta. Não, necessariamente, descomprometido.

Para [re]começar nada melhor que me [re]apresentar, correto? Então segue minha nova [re]introdução, especialmente para o Qualquer tempo (que chique):

Olá! Eu sou o Marcelo. Antes de qualquer coisa você precisa saber que sou um babaca e que deixo tudo pela metade. Tipo a faculdade de comunicação, nunca acabei. Ou um conto que um dia comecei e está lá parado esperando encerrar [e a Rosi nesse momento me escreve querendo saber quando é que vou terminar a diaba da história]. Falo palavrão mais que devo. Tenho medo de panela de pressão, de avião e de rato. Nasci em 1977 e não sei a diferença entre oitava série e sétimo ano. Não tenho filhos, mas devia – um dia explico o porquê. Sou um fútil [e a Rosi vai me dar uma ferroada no gtalk], consumista, faço coleção de livro e DVD [de série, não de filme] mas não leio nem assisto por falta de tempo. Tenho duas cachorras e minha maior preocupação é que uma está com manchas cinzas nos olhos. Tenho contas a pagar. Atualmente sou game addicted – eu e um monte de donas de casa americanas. Super me dou bem com empregada doméstica, motorista e garçom. Não acredito em duendes. Já bebi, já fumei, já parei, já voltei, já parei de novo. Já fui gordo, já fui magro, hoje não sei bem onde estou. No mais eu gosto de falar besteira, mas quase sempre numa mesa de bar eu fico calado. E muito importante: fui ator, vou ao teatro, mas prefiro cinema.

Por enquanto é só.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Das pequenas mortes

Em algum lugar li, talvez tenha ouvido, que só se vive até a hora do parto. A partir do momento em que nascemos passamos a morrer pouco a pouco. Não deixa de ser verdade. A figura da morte costura nossos rastros e, independente do quão enviesado seja o caminho, chega-se a ela inevitavelmente.

Plagiando o compositor, não tenho medo da morte. Mas sim medo de morrer. Talvez pela dor, se é que dói, ou pela certeza do definitivo. Se me for dada opção de escolha quero morrer louco, sem nem saber qual o meu nome, falando um monte de palavrão em um corredor de hospital, enrolado numa imensa colcha de piquê.

O título acima diz das pequenas mortes. Até agora só falei da morte grande, a final, e não é esse meu propósito. O texto deveria ter começado pela seguinte epígrafe, um escrito para o twitter que não publiquei por achar depressivo:

"Há 21 anos minha avó morreu do coração. Perguntei se as pessoas não podiam ficar mais antes de ir. Daí descobri que existe o câncer."


Fato: tenho vindo de uma sequência de mortes, efeito dominó. Por ser de família grande, pessoas mais velhas, algumas delas adoecidas num mesmo tempo; mas não por susto, esse ano não aconteceu acidente nenhum. Eram mortes previsíveis, nem por isso menos doídas. Perdi meu padrinho, por coincidência meu avô, figura semelhante por demais a mim. Mais que o meu próprio pai. Por isso a dificuldade em deixar passar. Não saí ileso, porém até hoje não chorei. Então não quero falar sobre isso enquanto não chorar de verdade.

Quero, sim, falar das pequenas mortes. Morre-se a todo dia, desde o ato de se lavar. Saem células mortas, já ocupadas pelas mais novas e vivas. Fios de cabelo presos na escova, no pente. Bactérias na escova de dentes, nossas partes. Morre-se ao fumar, também ao caminhar, pela simples ação do vento. Vamos morrendo para nós mesmos todos os dias.

Ao mesmo tempo morremos para os outros. Aqueles que se vão, passageiros como nós os somos. Aquele que dorme e não sabe se acorda. Aquele que se matou no exato momento em que escrevo, levando consigo todo um seu mundo do qual não mais faço parte. Ao morrer o nosso universo conhecido se acaba, e com ele todo o resto. Da menor importância, um fim de mundo a cada corpo que expira.

Morremos e matamos a quem nos quer bem. Uma palavra ríspida é ato de morte tão cruel quanto um sorriso. Não se engane, sorrisos são cruéis, fatais, amorais. Principalmente os não espontâneos, os que mascaram o sentimento real e são usados cotidianamente em casa, no escritório, na cozinha e no banheiro. O sexo, gerador de vida, é, por definição, uma chacina. Quantas células morrem para que apenas uma tenha sucesso...

Vivemos cercados, sitiados, pelas pequenas mortes. Ainda assim vivos. Cientes do que nos aguarda e, meu caso, com pressa nenhuma de chegar lá. Sem paranoias, um certo medo. Talvez o bom no viver seja justo isso: a ciência de que um dia vamos embora, não se sabendo exatamente quando. É improvável, teoricamente sim é possível, que um piano desabe na minha cabeça amanhã ao sair de casa. Mas quem garante?

As pequenas mortes, nossas, dos outros, da folha que cai da árvore, mandam dizer que estamos vivos sem saber quanto tempo resta. Mandam dizer que o nosso universo é perecível, sim, e por isso deve ser utilizado. Mas sem urgência. Deixemos urgências e emergências para o plantão médico.


... Assim encerro os meus "das". Se você, leitor, obedeceu ao guia que deixei no texto da interpretação, volte e releia todas as metáforas. Se, por outro lado, passeou buscando entrelinhas – e as encontrou – tente reler tudo de forma simples e direta. Porque, no fim, importa não o sentido que imponho aqui, e sim o quanto dele chega em seus olhos.

Das passagens

Era ainda a primeira editora na qual trabalhei quando ouvi falar a primeira vez sobre o livro das passagens de Walter Benjamin. Livro que, impresso, foi parar nas lojas apenas em 2006, comigo já em transição entre o segundo e o atual terceiro emprego registrado na carteira de trabalho. Sou dos que duram na mesa de trabalho.

O título das passagens (no original "Passagens Parisienses", acabou saindo no Brasil apenas como "Passagens" mesmo) sempre me intrigou. O que seriam as tais passagens que precisavam de mais de mil páginas e não ficaram prontas, o homem morreu antes? Pois, claro, o livro trata da arquitetura de Paris – o que eu não sabia na época – e não, como supus, de uma análise filosófica de passagens da Bíblia.

Sim. Eu tenho o direito de interpretar um título como bem entender e, convenhamos, o termo "passagens" é bastante amplo e comporta significados diversos.

Fiquemos, por ora, na arquitetura. Da minha janela, na hora que escrevi esse texto em meu caderno, dava para ver uma ponte. Uma passagem. Que liga o centro da cidade ao bairro da Floresta. Por ela os carros, e as pessoas, passam.

As pessoas passam.

As pessoas passam, repito uma terceira vez. E quem me conhece sabe que vejo isso – essas palavras – como mots de ma vie. Não trato aqui da morte. Não me sinto maduro o bastante para analisar o efeito recente desse tipo de passagem na minha vida. Trato da morte depois, em um texto que vem sendo ruminado em minha cabeça há mais de um mês.

As pessoas passam porque é natural o ato de passar. Os amigos de hoje não são os mesmos de ontem e (muitos deles) não serão os mesmos de amanhã. Não há qualquer garantia de que eu vá jogar damas no asilo com meu colega de infância. Até pode acontecer, mas aí é destino.

Todos os dias "passamos" por rostos desconhecidos quando atravessamos a rua. Com a rotina do trabalho, acabamos passando por mais de dois rostos comuns cotidianamente, costumeiramente. Rostos que, apesar de conhecidos, são passageiros como nós mesmos os somos. Passageiros impermanentes na essência.

A consciência de que as pessoas passam é premissa importante para a prática do desapego. Não fui convidado para tal festa... Qual o problema? Não vejo mais aquele grande amigo... Quais interesses mudaram? E em definitivo o que realmente importa?

As passagens também retêm, por vezes. Por vezes as pessoas param. Sem querer. Por querer. Não querendo. E, inexoravelmente (aqui, e somente aqui, falo de morte), passam de vez. Importa, no fim, os traços e os rastros da passagem das pessoas por sua ponte. O valor que estas agregam a você enquanto passagem.

E importa, também, saber a hora de "deixar ir", de "deixar fluir" o ciclo (o trânsito?). Até porque, enquanto passagem, existe sempre a possibilidade de retorno. Nem que, antes, tenha sido preciso dar uma volta no mundo.


* Para as pessoas na minha ponte. As que estão e as que virão. As que passaram... bem, elas passaram.

Da interpretação

Para começar como todo mineiro, um caso. Era 1998, não sei mais precisar o mês, quando no meu trabalho pediram para eu fazer uma capa de livro baseada nos bordados de João Cândido Felisberto, o "Almirante Negro" da Revolta da Chibata, que bordava nos tempos livres. Simples assim: peguei uma foto de um pano de prato, tratei para que ela ficasse em tons de azul claro (azul que, vim a saber depois, é sempre a primeira cor escolhida por quem não sabe o que vai fazer), encaixei no projeto gráfico preexistente e fim. Capa montada.

O autor viu a tal da capa (que foi parar até na revista Veja – em um tempo no qual eu me importava com isso), e – disseram – ficou muito emocionado. Disseram depois, também, que eu, capista, queria transmitir tal e tal coisa com a capa, que a delicadeza do bordado, que a linguagem, blá-blá-blá... Tudo mentira. Eu não queria “dizer” nada com aquilo. Só trabalhei em cima de um material que me deram. Sem intenção alguma de produzir um sentido que transcendesse a imagem ali exposta. A tal capa, para mim, é, foi e será uma foto de pano de prato. Sem mais.

Esse caso específico me leva a pensar nas aulas de literatura. Aquelas. Drummond escreveu que "tinha uma pedra no meio do caminho". O povo entendeu tudo e mais um pouco. Que ele tinha brigado com a esposa, que não estava satisfeito com a vida, que queria causar um grande falatório com o tal poema. Pois bem, senhores, para mim Drummond estava andando na rua, tropeçou, não tinha mais o que fazer da vida naquela hora e decidiu escrever um poema para a tal pedra. "Ah mas você está reduzindo muito a sua visão frente o grande poeta que Drummond foi." Talvez. Por sorte, na aula de literatura, nunca me pediram para interpretar Drummond. Mário de Andrade uma vez e, no salto dos meus então 15 anos, fiz uma crítica descendo a lenha em "Amar, verbo intransitivo" (que odiei, claro). Não tirei zero, lembro, mas tenho certeza de que se fosse Drummond e a sua pedra eu teria ficado de recuperação.

Enfim... Onde quero exatamente chegar com isso? Ao ponto mais simples de todos: na maior parte das vezes o que escrevo aqui é para ser lido tal como escrito, sem entrelinhas. Não produzo literatura – não aquela das aulas de colégio. Dos textos mais perfeitos para mim é receita de bolo. Dois ovos, farinha, leite, fermento e forno. Sem margem a "o que ele quer dizer isso". Receita de bolo e rótulo de embalagem.

Então, prezado leitor, quase sempre (reservo-me o direito das metáforas), o que está anotado aqui deve ser lido de forma corriqueira, como quem lê uma receita. Minhas dores, crenças, desafetos e lamentos quase nunca chegam emoldurados ou com passe-partout. E essa afirmativa é – e será daqui para frente – importantíssima. Entenda esse texto (eu, o autor, veementemente sugiro) como um guia de leitura do que está por vir.

Porque, como sempre, o que deveria ser um "parágrafo inicial" tomou vida própria. E encerro por hora para não ficar grande demais.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Ser feliz

Das coisas que gosto de fazer é passear pelas bancas de revistas e olhar as capas. Raramente compro alguma coisa, mas capa em banca é algo que me atrai desde criança. Lembro da capa da primeira Criativa, ainda com páginas destacáveis para se colocar em um fichário: uma mulher comendo uma fatia de melancia.

Independente do meu gosto, leio capa de revista principalmente para acompanhar novela. Não vejo um capítulo de nada mais, sei bem quem faz o quê só lendo manchete. Pulo a parte das revistas de regime – elas nunca mudam, tem sempre alguém ou enrolado na fita métrica ou segurando uma calça modelo Itu –, das revistas exclusivamente para o público feminino – com guia de sexo lacrado que ensina a encerar um chão como ninguém – e as revistas de mulher pelada.

Chego, claro, aos periódicos informativos semanais. A sociedade em si é meio que regida por um termômetro emocional bastante interessante, que pode ser medido por essas capas. É tragédia mundial? Toda revista abre com algum flagelado ou cena de destruição. Campanha política mostra as figuras e os ataques de sempre, no carnaval um escândalo qualquer e por aí vai.

Interessante, contudo, não é a medição da temperatura nacional em épocas de comoções em massa, mas sim nos períodos considerados "tempo comum". Essa semana nas capas dos três periódicos ditos principais, com maior circulação pelo Brasil, o tema é um só: ser feliz. Uma revista traz em letras grandes que o brasileiro está mais feliz. Outra que casar faz bem e deixa a pessoa feliz. A terceira sobre os melhores lugares para se trabalhar [feliz?]. Em uma visão rasteira podemos chegar à conclusão de que, essa semana, quem não estiver feliz, não tiver um bom emprego nem um bom casamento, deveria se mudar do país e aguardar uma capa mais adequada.

Curioso com tanta felicidade procurei pela matéria da Istoé, aquela que escancara sorrisos, e vi que a razão da manchete é para justificar que o brasileiro está comprando mais. Um gráfico de escala mostra um aumento no consumo de moradia, eletrônicos, automóveis, computadores e até mesmo smartphones. Como tenho um iPhone, uma televisão nova e uso o cartão de débito para pagar as contas (o banco me concede cinco saques mensais, o excedente eu tenho de pagar tarifa), provavelmente estou encaixado no perfil dos felizes. No momento, pelo contrário, não estou esbanjando alegria pela cidade. Acordei foi muito bravo por ter de dar aula às sete da manhã em plena segunda-feira, e já sabendo que meu dia só termina às dez da noite. Em tempo: da minha janela não dá para ver nenhuma marcha de pessoas contentes dançando como se fosse comercial de refrigerante.

A matéria começa elencando várias pessoas e a razão da sua felicidade: "o executivo foi promovido; a psicóloga viajou para o exterior pela primeira vez porque pôde parcelar as passagens em suaves prestações; o advogado trocou um espaçoso apartamento no Rio de Janeiro por um imóvel maior ainda; a gari comprou um celular para o filho de 15 anos e vai presentear a filha de 13 com um perfume caro". Existem outros exemplos envolvendo de alguma forma a compra ou aquisição de algum bem. No meio de todos eu destacaria um realmente merecedor: "a estudante de medicina que bancou a faculdade com uma bolsa do ProUni. Ela é o primeiro membro da família a fazer curso superior". De todo modo ninguém está feliz porque um parente se curou do câncer, ninguém está feliz porque ama o parceiro e os filhos, ninguém está feliz porque ganhou um beijo de bom dia.

Dentro desse recorte a matéria me deixou, na verdade, triste. Por simplesmente registrar uma parecença de mentalidade com aquela norte-americana da década de 1950, ou mesmo com o milagre econômico nacional nos anos 1970. Por, em um tempo de necessidade de educação social, resgatar o pensamento de que "(...) os integrantes da baixa renda precisam mostrar aos amigos e familiares que possuem um bem de causar inveja". A matéria só não diz o preço e a efemeridade desse tipo de felicidade. É aguardar para ver o quanto dura.

sábado, 21 de agosto de 2010

Uma questão de educação

Há alguns dias venho pensando sobre o que escrever para não despertar em mim qualquer tipo de sentimento de autocomiseração. As pessoas, algumas e principalmente aquelas cancerianas, tendem por vezes a se expor em um nível de olhem o quanto sofro, o que é, no mínimo, humilhante e inútil. A cada qual cabe sua parcela de problemas e eventos, e o modo como recebemos nossas cruzes e o que com elas fazemos diz respeito somente a cada um. Para quem me lê e me conhece apenas por aqui – são poucos, penso, se é que existem – fica apenas o registro de que dias mais tristes aconteceram, e uma frase de Santa Teresa D'Ávila: "Si en medio de las adversidades persevera el corazón con serenidad, con gozo y con paz, esto es amor". Sem mais.

Ontem, enfim, algum tipo de assunto surgiu, decorrido deste vídeo, entre amigos. Não vi nem vou ver o vídeo todo, mas o resumo mais ou menos contextualiza: "(...) tudo tranquilo no embarque, de repente aparece essa figura aí trêbada, pra lá de Bagdá". Ou, como anotei, o "doido do ônibus" entrou no avião. Pelos comentários parece que o moço foi removido da aeronave mas não quero entrar em detalhes sobre o comportamento do sujeito, porque tem gente demais para fazer isso, e sim de minha reação frente o vídeo.

Em primeiro lugar, como disse, não terminei de ver. Não dei conta. Tenho pavor de avião e, para fazer uma associação comparativa, eu em voos sou como se desenvolvesse a Síndrome de Asperger. Perco a habilidade de expressar emoções. Fico incapaz de atos simples como, aconteceu da última vez, levantar e bater uma foto da minha mãe. Pedi à aeromoça. Toda e qualquer coisa que foge do padrão, do protocolo, torna-se de uma incompreensibilidade absurda, me levando ao limite do pânico. Qualquer conselho para procurar ajuda psiquiátrica não é bem-vindo: eles vão sugerir a máquina de abraçar.

A atitude do moço foge do padrão, o que me levou diretamente a apertar o confortável botão de xis e a comentar da saudade do tempo quando incomum era a aeromoça sorteando sacola de brinde na ponte aérea. Porém, como lancei isso em uma lista de discussão, ficou mais que claro que cada vez mais os aviões vão atender cada vez mais gente de diversas classes. Em resumo: vai ter cada vez mais pobre voando.

Daí que, e esse é um ponto que levanto, o problema do homem no vídeo não é ele ser pobre, mas sim ter sido inconveniente e desrespeitoso com pelo menos outras 50 pessoas com quem ele dividia o espaço. O problema dele não é a pobreza, não é o álcool, não é ser negro (como ele alude), não é nada além de ser uma pessoa "momentaneamente" incapacitada ao convívio social. E a culpa é dele? Não. É tudo questão de educação.

Não venho de família rica, não venho de família pobre, até hoje não sei delimitar a minha classe social. Como não tenho aspirador de pó nem empregada mensalista eu desço de nível, então fico naquele meio-termo indistinto das pessoas que têm rios de imposto a pagar mas não conseguem comprar um carro. Não que eu o queira. Independente disso, orgulho-me de ter sido pelo menos educado bem dentro de casa. O suficiente para saber que existe o meu espaço e existe o espaço do outro, que deve ser respeitado.

O moço do vídeo não teve esse tipo de educação por algum motivo. Descaso do governo, mãe ausente, abandonado nas ruas, não importa. Ele não foi educado para a situação de convívio que o lugar pedia. Porém ele não é o único e a classe à qual ele aparenta pertencer não é a única afetada pelo grande mal da falta de trato com o outro que adoece a sociedade.

Você já furou uma fila? Joga papel pela janela, seja em que lugar for? E lixo no chão do ônibus? Já grudou chiclete na cadeira do cinema? Você grita ao celular? Tem um carro com tanta caixa de som que não cabe um envelope no bagageiro? Sai pela rua com o carro ligado mostrando o seu gosto musical pela cidade? Já jogou gasolina e ateou fogo em mendigo? Bateu em doméstica no meio da rua achando que ela era prostituta? Parabéns! Você pode se assentar do lado daquele sujeito porque, tirando a gravidade da situação, dele você não se diferencia em nada.

E talvez não seja também sua culpa. Pode ser culpa do seu pai, frustrado por não estar em casa, que te encheu de presentes e sempre passou a mão na sua cabeça. Pode ser a mãe alcoólatra que só ia dormir depois de te dar uma surra. Pode ser a vida. Pode ser tudo. Pode ser o dia de cão, o trabalho que não fica pronto. No fundo, tudo é causa para jogarmos nossos transtornos na figura do outro e não olharmos para nós mesmos.

Digo isso porque hoje fui posto à prova, e falhei. Entrei em um ônibus e lá estava ele, o "doido do ônibus", disfarçado de mulher. A mulher gritava e mexia com todos e mostrava os remédios que tinha de tomar e falava e era insuportável. E eu fui para o canto e usei o meu provedor instantâneo de autismo, também conhecido como iPod. Até a hora em que ela me tocou. E, em um surto violento, por estar em um ônibus e não dentro de um avião, eu reagi. Olhei para a mulher e disse "Eu por acaso estou conversando com você? Estou prestando atenção em você? Então me deixa em paz". E ela calou. E desceu no ponto seguinte. E a trocadora olhou para mim como se eu fosse mais doido que a doida. No fim das contas também mereço ser retirado do voo, ainda preciso melhorar muito para conseguir um assento decente.

Encerro, de novo, com Santa Teresa D'Ávila: "(...) Procuremos siempre mirar las virtudes y cosas buenas que viéremos en los otros y tapar sus defectos con nuestros grandes pecados... tener a todos por mejores que nosotros". Essa é a grande lição do dia.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Coletivo comum

Férias são efetivamente bom tempo. Mesmo que não façamos nada, o que não é recomendável, a mudança prolongada de rotina ajuda inclusive a renovar a perspectiva do trabalho. A retomar o foco, em outras palavras. Para mim férias e feriados estão associados a viagens. Seja pelo fato de a minha mãe morar a uma distância razoável – com a graça divina –, seja por eu realmente achar necessário pegar a estrada para considerar que estou oficialmente "de folga e longe de tudo".

Esse ano, como dito antes, acabei parando de novo em São Paulo. Para quem me acompanha, vez por outra apareço pelas bandas de lá, preferencialmente a passeio e em dias frios mas ensolarados. Não gosto de São Paulo com chuva. Também não gosto de avião, porém o meu gostar não interfere na mecânica da coisa. Vem acontecendo de eu ver e falar mais com os amigos paulistas que com os mineiros ali da esquina, e São Paulo sempre me é muito prazeroso.

Como em todas as férias, carrego um kit de sobrevivência com livros que não li e dvds que não assisti – tenho horror do Word me sugerir dvd em maiúscula, soa agressivo aos olhos. E, claro, como em todas as férias, não faço metade. Só li um livro. Na verdade estou nas últimas páginas, e vou passar a minha coleção da Mediadora adiante, deixar para ler no fim do ano. Nem gasto metade da mala de roupas, o que é perfeitamente comum.

O livro que li – estou lendo – é O símbolo perdido. Daquele cara que escreveu O Código Da Vinci e ajudou a deixar o Tom Hanks com mais cara de babaca. Entenda: vez por muita preciso da literatura descartável para sobreviver. E, sejamos francos, esse livro é bom. Melhor que o Código, mas não tão bom quanto Anjos e demônios, que tem um frescor magnífico ainda não superado pela experiência do autor. Se o Robert Langdon durar mais uns três episódios – ele tem fôlego, idade e mercado para isso –, talvez o Dan Brown se supere.

Quem mais me interessou no Símbolo perdido foi uma personagem feminina coadjuvante: Trish Dunne. Não quero me aprofundar no livro para não estragar o prazer de quem não leu. Trish me marcou por ter desenvolvido um software para medir a temperatura de uma nação. Copiando do livro:

"(...) O que estou querendo dizer é que ele quantifica o estado emocional do país. (...) – Trish explicou como, usando um campo de dados constituído pelas comunicações do país, era possível avaliar o humor da nação com base na 'densidade de ocorrência' de determinadas palavras-chave e indicadores emocionais no campo de dados. Épocas mais felizes tinham uma linguagem mais feliz, e épocas de estresse uma linguagem mais estressada."

Não sei a dimensão de verdade desse software, perfeitamente plausível na minha cabeça, e, francamente, ideia de gênio assim como os clipes e a fita crepe. O livro discute en passant a questão ética da análise de dados pelo governo, mas a personagem em si é pragmática: o uso que fazem do produto desenvolvido não diz respeito a ela. Santos Dumont, dizem, se matou ao ver o avião ser usado como arma. Trish não morreria por isso.

Retomando o fio das férias, gosto muito de ir a São Paulo mesmo quando não previsto – esse ano pretendia visitar qualquer lugar com praia. Férias me servem enquanto reciclagem, e já pus de lado faz muito a vergonha de pedir aos amigos para me indicarem coisas. Como, por exemplo, músicas novas. Ando bastante reacionário musicalmente, talvez preguiçoso, e não encontro vontade de conhecer novidade. Por isso, também, gosto de visitar os amigos, beber vinho, jogar baralho, falar besteira e escutar um monte de música pela primeira vez. Ano passado fiquei conhecendo a Mariana Aydar. Esse ano fui apresentado a Karina Buhr, Mayra Andrade, Cibelle Cavalli e, especialmente, a Tulipa Ruiz.

Já tinha lido algumas pessoas comentando da Tulipa antes. Só que o nome de flor não me atraiu. Eu gosto de mulheres com nome de flor, mas fiquei naquelas de "ah não vou ouvir disco de mulher com esse nome não". Erro meu.

Entreguei o iPod e disse para meu amigo: "pode tirar tudo, menos a Dolores". Quando fui ouvir pus o conteúdo no shuffle e assim, só assim, ouvi a Tulipa cantar Efêmera, e me encantei pela voz da moça. Disco todo ouvido – aliás, dá para ouvir o disco inteiro aqui –, ficou a sensação de que a moça cantava para mim. Especificamente na música Às vezes, que pareceu a Tulipa literalmente estar me mandando um bilhete.

Quando vou a São Paulo passeio pela Augusta, sempre de óculos escuros, e ignoro o mundo. Blasé sem saber, disse um amigo certa vez. Sem endereço mas com o mesmo telefone, rodo pelas festas e pelos bares do centro da cidade. Tenho ar cansado, banal e normal e, claro, moro em Belo Horizonte. Ouça a música para entender melhor.

Comentei sobre isso com uma amiga, que respondeu: "é a tribo". Ficaram dúvidas: seria minha geração tão comum ao ponto de várias pessoas se identificarem tão profundamente com diversas expressões como se elas tivessem sido produzidas diretamente para o indivíduo e não para a massa? Seríamos nós, a tribo, um metassistema, um cardume, no qual a linha de pensamento é tão compartilhada que acabamos por nos tornar estrutura única – composta por milhões de unidades distintas, mas vista como um grande bloco? E se sim, fazer parte disso seria algo bom ou não?

Fatos: minha geração agrupa a transitoriedade da capacidade de aquisição de informação. Saímos do telefone de ficha para o iPhone, da TV preto e branco para o Youtube – meu grande facilitador de ver novelas. Fomos os primeiros a experimentar a possibilidade de expressão para a globalidade pelo simples fato de estarmos vivos na época em que "fazer um blog" era algo muito novo. Com isso geramos, pelas tentativas e erros, uma grande gama de informação sobre nós mesmos. Os mais inteligentes transformaram as informações e desejos nelas contidos em produto – produtos com identidade, como Reverbcity e congêneres, Ronaldo Fraga e suas roupas ilustradas com personagens Disney, séries da minha infância lançadas em dvd e por aí vai. A geração que era criança na década de 1980, relembro, foi a primeira efetivamente bombardeada pelo furor consumista ainda não regulamentado.

E não precisava um software para desenvolver essa linguagem. A Tulipa, provavelmente, lê muito, circula muito, participa de um grande grupo do qual, mesmo sem querer, faço parte também. Fazemos parte, acho pouco provável que adolescentes apaixonadas pelo mini Fabio Jr. compartilhem gostos comigo. A Tulipa canta bem e eu anseio por um show dela em BH para dar um grande abraço. Mas ouvir Às vezes me deu o grande medo de ser comum demais, ordinário demais, e também de estar fazendo tudo ao contrário, e de ter ficado comum por ter tentado simplesmente ser diferente do resto.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Sete anos

Por vezes me questiono a necessidade ou não de expor em um blog parcelas íntimas demais, pessoais demais. Porém, de certa forma, certos tipos de exposição, mesmo parecendo extremamente cruéis e inúteis acabam se tornando também libertadoras. E, no fundo, o que quero hoje é tratar sobre libertação.

Começo com Federico Garcia Lorca, A Casa de Bernarda Alba:

En ocho años que dure el luto no ha de entrar en esta casa el viento de la calle. Haceros cuenta que hemos tapiado con ladrillos puertas y ventanas. Así pasó en casa de mi padre y en casa de mi abuelo. (...) Y no quiero llantos. La muerte hay que mirarla cara a cara. ¡Silencio! ¡A callar he dicho! ¡Las lágrimas cuando estés sola! ¡Nos hundiremos todas en un mar de luto! (...) ¿Me habéis oído? Silencio, silencio he dicho. ¡Silencio!

Para Bernarda, eram oito anos o tempo do luto decretado. Em minha cabeça, quando comecei a pensar esse texto, teriam sido sete. Tenho até hoje a memória da encenação da peça em uma casa velha, com a matriarca nos expulsando ao final, decretando o fechamento da residência pelos próximos anos. Sete. Como os anões da Branca de Neve, e com todo o simbolismo que o número traz em si. Apesar de o texto me contradizer com relação à duração do luto, penso sete enquanto número simbólico ideal.

Sete anos atrás passei parte de meu aniversário em um cemitério de uma cidade perto de São Paulo. Fosse hoje eu teria saído correndo naquele exato momento, fugindo no primeiro sinal. Mas não era, não poderia ter sido hoje. Há sete anos começava, sem eu saber, um tempo de luto. Por ironia o luto vem a se encerrar comigo, de volta a São Paulo, passando o aniversário na Loja da Galinha Morta. Irônico, diria aquele que controla o ciclo da vida.

Sete anos atrás meu pai era diagnosticado com câncer, vindo a morrer alguns anos depois – não trato desse luto específico por agora. Sete anos atrás eu decidi abandonar um emprego no qual permaneci por exatos sete anos. Seria estupidez de minha parte não assimilar a influência dos ciclos de sete em minha vida. Dizem, inclusive, que o paladar humano muda de sete em sete anos. Razão pela qual eu, talvez, tenha provado uma berinjela e gostado, e comido jiló sem achar ruim.

Voltemos ao luto, senão o texto se estende mais do que devia, fica cansativo e não chega ao final arrebatador no qual eu revelo toda a minha verdade, me liberto e tomo uma decisão definitiva que transforma minha vida. (Por favor, se você espera por isso vá ler Sidney Sheldon e me deixe em paz. Não sou uma obra de ficção – elas têm pontos finais. Estou mais para work in progress.)

O fato é que já se foram sete anos nos quais uma parcela, ainda que pequena, de mim mesmo, ficou fechada para as portas e o vento das ruas. Sete anos em que o medo de caminhar pelo centro de São Paulo passeou lado a lado com o desejo de encontrar alguém, acidentalmente, e perguntar: "por quê"? E ter medo de minha reação. E ter medo do desejo. E ter medo das respostas. E ter medo de saber tudo isso pelo simples, natural e humano medo do desconhecido.

Até que.

Até que enfim vi que não é mais isso. Enfim veio o imenso e necessário vazio, pronto para ser preenchido com cores novas. Foi perdido o temor de caminhar e esbarrar sem querer em quem não devia. Perdi a vontade de caminhar e esbarrar em quem gostaria. Perdeu-se o sentido. Não há mais sentido. No hay banda, já mostrou David Lynch.

¡Quiero irme de aqui, Bernarda! ¡Bernarda, yo quiero um varón para casarme y para tener alegria!

Declaro, portanto, encerrado o tempo do luto. E essa é uma carta de despedida que importa pouco. Poderia ir para um baú e ficar por lá a amarelar, calhou de vir para um blog que não sei quem lê. Declaro visto que não há tristeza, não há alegria, não há nada. Talvez uma sombra, como a cicatriz em minha mão, que vez por outra me faz ter história para contar. E uma ou outra prevenção como as que tomo quando entro em lugares onde sou mal atendido. Se houver encontro, quando houver, se é que já não o houve, será um cruzamento entre desconhecidos. Como aqueles que acontecem todos os dias quando cruzamos por transeuntes que nunca mais veremos.

E a quem me perguntar por que tudo isso é importante para estar escrito aqui respondo: porque foi sim minha vida. Agora abro as portas todas deste quarto, deixo o mundo e o sol entrar.

É hora, de novo, de ser livre.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Band-Aid

Um dos primeiros desencantamentos que tive foi quando a minha mãe me levou a um programa infantil daqui de Minas Gerais. Viajamos de Ponte Nova a Belo Horizonte para passar as férias e, entre outras coisas, fomos assistir à gravação do programa. Partindo do pressuposto que só fui entender alguma coisa de operação de câmera, roteiro, direção e congêneres na faculdade, o que mais me surpreendeu (e frustrou) na época foi perceber que as pessoas eram sérias.

Porque criança tem disso, todos riem para ela. Até que não riem mais. Existe um momento em que a criança deixa de ser engraçadinha para virar uma chata, e o adulto se cansa. Mas a apresentadora de tevê, a Tia Dulce, ela sempre sorria. Era ligar a televisão no horário e lá estava ela. Sorrindo, simplesmente, coordenando brincadeiras e servindo de babá. Eu adorava a Tia Dulce como todas as crianças do meu tempo. Continuei gostando depois que fui à gravação do programa. Mas, verdade, me decepcionei muito quando vi a Tia Dulce séria, Rapadura e Pituchinha de cara fechada. Como assim ela não está feliz o tempo todo? Por que ela está brigando com aquele moço? Essa não é a Tia Dulce que eu conheço.

Foi em um programa infantil, ou em uma gravação deste, que comecei a perceber que as pessoas não são o que parecem. A Tia Dulce não é toda fofa, a professora não está sempre correta (e já tive brigas horrorosas com professores por conta disso), o amigo "legal" pode ser um "mala". Adiantando um pouco, foi uma frustração memorável — e quem se lembre de algo ocorrido aos cinco, seis anos de idade que não seja "trauma" levante a mão — que desencadeou o meu processo de entendimento de que todas as pessoas vêm com diferentes nuances. Pai e mãe não contam: o filho nasce acostumado às variações de humor domésticas, para ele os pais "são assim" simplesmente.

Parte de minha personalidade é construída na essência por memórias de frustrações: a noite de Natal em que acordei e vi os meus pais colocando os presentes do Papai Noel nos sapatos (não desejem que seus filhos descubram assim que o Papai Noel não existe – chorei dois bons dias); a briga de colégio que não aconteceu porque as serventes da escola seguraram a mim e ao outro no meio da praça (Fabiano, nunca mais vi); a bolada na cara no jogo de futebol infantil que me fez descalçar as chuteiras para todo o sempre; a surra de cinto que tomei porque comprei um pote de gel da marca "New Wave"; o dia em que "esqueceram" do meu aniversário e eu sumi (não aparecendo, consequentemente, na festa surpresa que pensaram em fazer para mim).

Ontem em uma conversa um amigo disse que estava triste. E respondi: faz bem. Você tem todo o direito de ficar triste quando quiser. As pessoas precisam de preto e branco, luz e sombra, claro e escuro. É tão insuportável uma pessoa cem por cento transbordando felicidade quanto o extremo depressivo. Para contrabalançar a alegria da infância é que existem traumas. A perda da avó, com sua mãe gritando e querendo pular no caixão. A saída do pai de casa. O irmão que quebra o braço, a irmã que toma um ponto debaixo do queixo. E a gente sem saber lidar com tudo aquilo.

Até que de repente chega, devagar, o equilíbrio. Para a vida, claro, dar uma balançada na corda e forçar uma meia-volta. Assim seguimos, eu e todos, rodopiando pratos. Porque além de pagar mico, viver é, um clichê para encerrar, cair do cavalo de quando em vez.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Os desconhecidos

Penso, e às vezes faço qualquer reflexão sobre pessoas que eu deveria conhecer. Os conhecidos e amigos de amigos dos amigos que todos dizem combinar com você, e que, por (des)coincidências, nunca apareceram na sua frente. E seja por alguma parecença de linha de pensamento, semelhança física ou ainda por cisma de alguém, nasce uma interessante lista de ilustres desconhecidos que deixam a sua vida, aparentemente, "por completar".

Oficialmente parei de me preocupar com esses ditos quando pedi um certo alguém (que não me lê) de presente, e veio. Todos os gurus da autoajuda dizem para termos cuidado com o que pedimos. É verdade, tenha medo, muito medo, daquilo que pede. Pode acontecer e ser um problema maior.

Porém, como bom curioso, sei que existem por aí pelo menos três ou quatro sujeitos que são "a minha cara", outros que têm "um papo muito legal", que "você tem de sentar num bar pra tomar uma cerveja junto" e "vocês super combinam"... O de sempre, quem nunca ouviu?

Certa vez uma dessas pessoas de minha lista (que também não me lê) veio conversar. On-line, moramos em cidades diferentes. Provavelmente também eu estava na lista do lado de lá. Três minutos e acabou o assunto e ficou aquele silêncio de quem não sabe mais o que digitar para engatar o gancho de continuar conversa. Serviu, sim: para eu perder medo e preconceito e parar de achar que a criatura era por demais ensimesmada. Mas foi assim, por uma ação do outro lado, que realizei (de novo) que o tudo-a-ver dos outros não tem a ver com o meu. Ou talvez que o meu tudo-a-ver tenha de partir de mim antes de tudo.

Não que eu não acredite mais em amizades que poderiam vir a acontecer. Ou em afinidades. Penso que deixei de crer nos arranjamentos, sob qualquer aspecto. Não creio mais em amores ideais, em amigos ideais, no trabalho idealizado. Não acredito nem professo o cotidiano ideal, e me abstenho totalmente do conceito de se ser comum. Sempre serei do avesso e já fui trabalhar de pijama. O que não me faz nem mais nem menos medíocre.

Ao mesmo tempo tenho noção de que também sei ser pessoa difícil, principalmente no começo. Parte grande dos amigos me tomaram por antipático à primeira vista. Depois, com o tempo, amoleço. Parte da falta de empatia é com certeza responsabilidade minha.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Sabático

Estava lendo a revista Vida Simples desse mês, uma matéria sobre ano sabático. Para o desavisado de plantão, por mim a matéria teria começado desse jeito: ano sabático não é um ano em que a pessoa se dedica ao estudo e aperfeiçoamento da bruxaria. Muito menos aquele tempo que o iniciante do candomblé passa na camarinha. É simplesmente uma época em que o indivíduo dedica a si próprio, a um projeto de vida, a uma viagem longa ou até mesmo ao ócio. Um espaço de tempo para se voltar a novos projetos que não o trabalho cotidiano seria, talvez, a melhor definição.

A matéria diz que "um período sabático faz parte dos planos de muita gente, mas poucos são aqueles que o colocam em prática". Talvez porque, complemento, trocar o emprego fixo por um tempo para pensar em algo não necessariamente rentável esteja um pouco abaixo da capacidade financeira do cidadão médio brasileiro. Eu mesmo, 32 anos, brasileiro, sem filhos, retrógrado e reacionário, não me vejo "dando um tempo" no emprego para escrever um romance, por exemplo.

Mais interessante foi ver justamente livros dedicados ao período sabático. Fuja por um ano, Um tempo para crescer e deve haver mais literatura específica. Livro para tudo nunca falta. Só assusta um pouco pensar alguém que tira um período sabático para escrever sobre... sabático. Afinal, se o sabático não é dedicado ao ofício (também conhecido pela expressão trabalho), e se a escrita é um ofício, por vezes duro, inclusive, seria isso paradoxo ou não?

Esse blog não está em período sabático, quem o escreve muito menos. Vivo o famoso período pré-férias, o que significa que de sabática a vida não tem é nada. Trabalho sobra e parece que não deve faltar pelos próximos dias, meses, anos. Segundo a revista, férias não são período sabático. Férias, segundo o autor, também conhecido pelos pronomes "eu" ou "mim" (que procuro evitar ao máximo) são para descanso...

Durante a ausência (daqui) fiz o de sempre: comi, dormi, trabalhei, fui ao teatro e ao cinema, vi séries na tv. De novidade estreei em óperas e venho lendo um livro para o vestibular. Não sei se vou fazer a prova ainda e nem quero comentar muito, justo para evitar grandes expectativas. Na minha ausência andei tocando meu bonde e observando pessoas e inventando histórias. Para, inclusive, ter o que escrever nessas bandas de cá.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Orientações políticas

Uma das promessas que fiz para 2010 foi não comentar sobre o Big Brother e muito menos sobre política. O que em ano eleitoral é praticamente impossível, mas permaneço tentando. Até porque é máxima que religião, futebol e política não se discutem. E fim.

Porém quero abrir uma pequena exceção para dizer algumas coisas sobre política. Não para me posicionar sobre tal candidato, dizer que alguém é melhor ou pior, tampouco para contar em quem vou votar. Por sorte, no Brasil, declarado Estado Democrático de Direito desde 1988, o voto é secreto e podemos mudar de opinião até no dia da eleição. A única opinião formada que tenho a respeito das eleições de 2010 é de que o próximo presidente do Brasil, homem ou mulher, será alguém feio. E meus comentários sobre política vão um pouco além do feijão com arroz no qual diversos blogs e redes sociais devem se transformar a partir do fim da Copa do Mundo.

Em 2008, aqui em Belo Horizonte, tivemos uma campanha "desigual". Entre aspas. O candidato da situação, apoiado publicamente pela máquina estatal (prefeitura e governo), versus um "azarão" (entre aspas) com tendências populistas. Resumindo a ópera para quem não mora pelas bandas de cá, as eleições foram uma bela troca de ofensas de ambas as partes, uma disputa deselegante na qual as propostas dos candidatos importavam menos do que quem tinha o cacique (ou pinto) maior. Ganhou o candidato da situação.

O parágrafo acima é contestável até certo ponto. Dizer que a máquina administrativa não foi usada nas eleições de BH em 2008 é a mesma coisa que dizer que o céu é flicts. Não quero abrir precedentes para contra-argumentações, ou defesa de tal ou tal pessoa. Principalmente porque as eleições passaram e o prefeito eleito vem conseguindo, dia após dia, mostrar o que ele realmente é: um bosta (fosse 1970 eu seria investigado pelo DOPS). Para quem duvida, sugiro dar uma lida nesse blog. Detalhe: nem vou comentar (ainda) sobre o tanto de casa que passou a ser demolida após a posse do prefeito da união.

Mas voltemos ao fio da meada. Baseado na campanha que vivenciei por aqui, na cidade em que moro, percebi que falta uma coisa à grande maioria dos candidatos: etiqueta. Não estou dizendo que todo mundo para ser candidato deveria frequentar a Socila, e a minha postura de que deveria ter "teste de admissão" para candidato é altamente questionável, uma vez que excluiria os analfabetos e pessoas que não soubessem a tabuada. Porém eu acho (mesmo) que eleição se disputa com elegância, e que a vitória nas urnas deveria ser a celebração do bom combate entre ideias e ideais. Foi pensando nisso que resolvi propor, até porque não achei no Google, um pequeno Guia de boas maneiras para o candidato. Algo mais ou menos assim:

Prezado Candidato, seja muito bem-vindo às eleições deste ano! Torcemos por seu sucesso e confiamos em seu potencial! É a sua participação no pleito que torna possível o exercício da democracia e da cidadania no nosso país. Gostaríamos de lembrar que, para assegurarmos o direito pleno de todos os envolvidos na corrida eleitoral, é preciso que você obedeça a algumas pequenas regras:

1. Seja educado. Ideias brigam, pessoas não. Não esmurre, não bata, não chute a bunda do seu adversário. Nem de brincadeira.

2. Tome banho todos os dias, escove os dentes, use desodorante. Lembre-se: o corpo a corpo é fundamental na campanha.

3. Contrate um marqueteiro. Contrate também um fonoaudiólogo. Se tiver um pouco mais de dinheiro, um stylist também ajuda muito.

4. Economize nos santinhos, nos cartazes com a sua linda foto no poste, nos muros pichados. Se isso funcionasse, Santo Expedito e os skatistas da Praça Sete não perdiam uma.

5. Lembre-se: você tem (ou teve) mãe. Provavelmente tem família. Antes de dizer que o seu adversário é isso ou aquilo, pense se você ficaria confortável se alguém dissesse o mesmo da sua mãe.

6. Não prometa o que não tem condição de cumprir. Faça uma pesquisa e descubra as funções do cargo que você está disputando. Lembre-se: deputado não constrói estrada nem acaba com a fome no Vale do Jequitinhonha.

7. Não faça spam, não faça corrente, não entupa o e-mail do eleitor com as suas propostas e projetos. Existem métodos mais inteligentes do que isso. Volte ao item 3.

8. Não subestime seu adversário. Não o transforme em um bobo só para vencer a eleição. Seja íntegro e saiba ressaltar os seus pontos fortes. Se o marqueteiro insistir em fazer faixas dizendo que o adversário usa fraldão de velho, demita o marqueteiro.

9. Se eleito, você vai representar uma grande parcela da população que confiou em você. Lembre-se disso quando estiver por lá, e não apenas nas próximas eleições.

10. Em caso de derrota, aceite. Daqui a dois anos você pode concorrer de novo. Volte ao trabalho de cabeça erguida e pare de se lamentar.

Finalmente, não se esqueça: você está disputando um cargo de prestador de serviços à comunidade, com a pretensão de defender o interesse coletivo. A sua casa de praia não é interesse coletivo, mesmo que a sua família seja imensa. Lembramos que roubar, desviar dinheiro, fazer ato secreto, esconder dinheiro em meia, são desvios de decoro e podem vir a ser investigados.

No mais, boa sorte! Esperamos ter você conosco no ano que vem!

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Dez coisas

Quando comecei o texto anterior pensei fazer apenas uma introdução ao que realmente interessava. Porém o texto fluiu além da conta, e tive de dividir meu pensamento em partes. Então, prezado leitor, considere esse escrito como uma sequência da postagem logo abaixo, ok? Agradecido.

Ano passado ganhei um livro de listas: Os 10 mais. No site dá para o interessado ler algumas páginas da obra. Não vou entrar no mérito de quem tem prazer em fazer listas. Alguém que arruma a bagagem em meia hora (e leva metade da casa sempre, porque pode fazer frio) não faz listas quase nunca. Na verdade as listas que faço são quase sempre de metas a cumprir: anual (que, como disse em um texto anterior, funcionam) e, quando o trabalho aperta, de trabalho a ser feito durante o dia. Só. Lista de supermercado? Se em 2009 fiz três foi muita coisa.

De qualquer modo, é muito interessante ver o grande mercado das listagens. Veja que troquei o termo aqui, porque não me interessam, como disse, as listas. E sim o seu conteúdo. Uma procura básica no Buscapé mandou a lista de 37 (!) livros. Clique no link para ver tudo, aqui copio (e comento) o título de alguns:

1001 maravilhas naturais para ver antes de morrer (de tédio?); 1001 vinhos para beber antes de morrer (de cirrose?); 101 bares para beber antes de morrer (eu já fui a mais de 101 bares); 1000 lugares para conhecer antes de morrer (vem com um passaporte de companhia aérea?); 1001 comidas para provar antes de morrer (precisa mesmo?); 1001 filmes para ver antes de morrer (eu sei quem tem); 1001 discos para ouvir antes de morrer (procurando tem site para baixar todos).

Enfim. Coisa para fazer antes de morrer é literalmente o que não falta. O que pergunto, na verdade é: para quê? Qual vai ser a minha diferença no além-túmulo se eu tiver ido ou não a 1001 lugares, provado 1001 tipos diferentes de comida, fumado 1001 charutos e morrido de enfizema? Se eu for, talvez, a 980 dos lugares que o livro sugere, a minha vida não terá sido perfeita?

Listas de coisas a se fazer são meros reflexos da pressão que a sociedade atual exerce sobre o indivíduo. Um ser humano ordinário, classe média, trabalhando 40h por semana com um salário razoável, a menos que ganhe na Mega Sena e mude de classe social, nunca iria dar conta de viajar para 1001 lugares diferentes (1002 se contarmos aquela fazenda maravilhosa que só você conhece e, claro, não está na lista). Pelo simples fato de se ser "humano" e de ter "contas a pagar". As listas então são apenas elementos de um desejo decorativo. Existem não para ser feitas, e sim para alimentar uma imensa sensação de frustração e incompletude.

Preferível ater-me a metas mais significativas, e plausíveis, e guardar para o planejamento algo mais interessante que viajar a 1001 lugares em clima de excursão. Por exemplo: passar, como fez uma amiga, seis meses na França. Morar lá, viver um tempo. Sou da turma dos que não fizeram intercâmbio no colégio. Vou voltar tendo conhecido um só lugar, porém com certeza mais feliz do que se tivesse pego a excursão CVC Europa completa em 15 dias. Se é para sonhar, que eu sonhe com algo confortável.

Pensando assim resolvi, paradoxalmente, elaborar a segunda lista desse blog. Duas listas em um ano, para quem não faz listas, amedrontam. Segue então, a minha lista de 10 coisas que não quero fazer na vida (com comentários):

1. Viajar para a Índia. Ok, todo mundo tem um amigo que foi à Índia e achou lindo. Deve ser, não duvido. Para os outros. Eu sou muito pró-conforto e antissocial para me meter em um passeio desses. O mesmo se aplica a lugares como Machu Picchu, Marrocos, Serra Pelada e congêneres.

2. Comer cérebro de macaco (ou qualquer iguaria exótica do nível, como gafanhoto, olho de cabra, carne de cachorro etc.). A menos que eu esteja ilhado e que seja a única opção de comida, graças à globalização sempre haverá um Mc Donald’s. Em tempo: já comi escargot e carne de tatu. Bons, os dois.

3. Fumar ópio. Parei de fumar toda e qualquer coisa. O mesmo se aplica a orégano, sálvia, haxixe, vinho de garrafão e qualquer droga que não tenha experimentado na faculdade. Foi-se o tempo, meu barato agora é fluoxetina e diazepan. Só.

4. Comer baiacu. Está em classe separada das comidas exóticas porque teoricamente é um peixe como outro qualquer. Com o diferencial de que um pedaço pode matar. E quer maneira mais boba de morrer do que comendo um peixe?

5. Brincar de roleta russa. Pelos mesmos motivos acima, apesar de eu achar bala na cabeça uma morte mais digna que envenenamento de peixe. Mais suja também, mas isso é problema para a Sunshine Cleaning.

6. Ir pescar no Pantanal. Qualquer atividade que envolva as palavras "acampamento", "céu aberto" e "mosquito" não foi pensada para mim. Incluo na lista aqueles acampamentos de treinamento de guerra e o falecido programa No limite.

7. Zorbing. Não sabe o que é? Vá descobrir.

8. Comprar um trailer. Eu nunca compraria um trailer, eu nunca viajaria em um trailer, eu nunca dormiria em um trailer, eu nunca moraria em um trailer. A menos que esteja passando necessidade. Mas acho que prefiro morar embaixo de uma ponte. Pelo menos é mais Brasil.

9. Abrir uma empresa. Não nasci para administrar o meu dinheiro, que dirá cuidar de funcionário. Meu sonho sempre foi receber, entregar a grana na mão de alguém e dizer "tome conta". Desde que eu tenha um cartão de crédito ilimitado e nenhuma conta a pagar, perfeito.

10. Ter uma fazenda. Apesar de estar no sangue, virei urbano demais para me ver no interior, umas vaquinhas, umas galinhas, uma casa no campo onde eu possa compor muitos rocks rurais. Prefiro guardar meus (poucos) amigos, meus (muitos) discos e livros aqui por perto.

Deveria ter sido incluído o item 11: parir. Mas isso é inerente a todo indivíduo do sexo masculino, e só iria consumir espaço em um texto que acabou ficando grande demais e que deveria também ter sido cortado em duas partes.