sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Empirismo

Chacrinha, parafraseando Lavoisier, dizia que na televisão nada se cria, tudo se copia. Isso tanto é verdade que qualquer nova ideia é transformada e repetida à exaustão, revista e sampleada pelas emissoras em busca de manter a fidelização do público, aumentar a audiência e, no frigir dos ovos, sobreviver. Nós, consumidores de mídia no início do século 21, demos o azar de nascer na era dos reality shows. Nossos avós ouviram O direito de nascer no rádio a válvula, nós assistimos ao Big Brother, nossos netos terão, talvez, alguma coisa no estilo Running Man ou Truman Show. Ou, mais provavelmente, consumirão produções específicas criadas por encomenda para seus aparelhos móveis interativos em um nível de personalização tão alto que será preciso rever conceitos de mass-media, relações de consumo, propaganda etc. Algo que, olhando bem, não é exato especulação.

De todo modo esse não é um paper acadêmico, não pretendo discutir tecnologia de comunicação, informação e reprodutibilidade em um blog pessoal. Não fiz isso na faculdade e não vai ser aqui o meu campo de redenção. O título, empirismo, resume a real proposta. Antes, porém, vamos para o tempo presente pensar o Big Brother ou qualquer programa do gênero à escolha. Um senso comum: o ser humano médio tem curiosidade pela vida alheia. Por isso, talvez mais por isso que qualquer outro motivo, existem janelas (e cortinas). A janela, essa que fica na parede, é método primitivo, até certo ponto seguro, ainda utilizado, para se captar informações do mundo externo e, também, transmitir informação. Se chego na janela do meu quarto e o casal do apartamento vizinho está nos dias de amor, magia e sedução, sou culpado por ter visto algo? Seriam eles mais ou menos responsáveis por terem deixado a cortina aberta? Cada um analise a situação a seu jeito, lembrando que o vizinho pode muito bem perceber que está sendo visto e jogar um sapato ou dar um tiro. Conjecturas.

Aproveitando o senso comum, alguém resolveu industrializar o voyeurismo e transportar a janela da parede para a sala de tevê, atraindo um público razoável, anunciantes dispostos a pagar por propagandas até certo ponto espontâneas, e alguns espectadores, eu entre eles, que compram o direito de exercer a observação do alheio em tempo integral. Já passei do estágio de ter vergonha de assumir algo, respondo pelos meus atos. Continuando. Com os reality shows vieram clichês como "isso é um jogo" ou "só quem está lá dentro sabe de verdade como é". Surgiu também a classe dos "teóricos de reality show". Gente que analisa o comportamento do outro, sem necessariamente ter habilitação em psicologia, e que, por vezes, se coloca no lugar daquele outro, dizendo qual seria sua atitude frente uma situação vivenciada no programa. Esse talvez seja outro lado que atraia parte considerável do público: a possibilidade de fantasiar sobre "como seria comigo se eu estivesse ali", dentro de uma experiência "real", na direção contrária das novelas, que por definição são obras fictícias e acabam trabalhando outro tipo de sensação.

Acredito que muita gente concorde com a afirmativa de que teorizar ou fantasiar sobre uma possível atitude frente a determinado acontecimento é totalmente diferente da vivência do fato. Ou seja, por mais que você imagine como será sua reação quando alguma coisa acontecer (uma demissão, por exemplo), só quando aquilo acontece, mesmo assim em função de um sem-fim de variáveis, dá para dizer que "na situação x eu ajo de modo y". Empirismo. Daí o fato de praticamente todos os participantes desse tipo de programa soltarem o famoso "só quem está lá dentro sabe de verdade como é". Afinal, além de conviver com estranhos, existe o clima de programa de tevê, alguma "censura" de não poder falar tal coisa, bronca de diretor, fazer o número dois com uma câmera (ainda que supostamente desligada) em cima etc. Fora a grande frustração de não ser exatamente o esperado. Seja lá qual for o "esperado", o "real" será bastante diferente. Essa afirmativa vale para a vida como um todo.

Chegamos finalmente ao que interessa: a noção de que existem "teóricos" e "participantes" de reality shows, e que estes constituem categorias distintas. Os primeiros analisam a situação e discorrem sobre ela sem necessariamente terem passado por aquilo (alguns ex-participantes comentam edições posteriores dos programas, o que, na linha de raciocínio que apresento aqui, daria a eles maior credibilidade), os outros passaram por aquilo e sabem como é o processo por um ângulo diferenciado. Empírico. Por analogia, dá para transportar teóricos e participantes para outras situações de vida.

Está no plano do conhecimento coletivo que colocar a mão no fogo queima, pôr o dedo na tomada dá choque, comigo-ninguém-pode é planta tóxica, manga com leite não faz mal, chá de boldo cura ressaca. E por mais óbvio que isso possa parecer, precisou de um bendito qualquer morrer comendo comigo-ninguém-pode para comprovar. Pelo menos uma criatura na face da Terra morreu envenenada, afirmo sem fazer pesquisa em lugar algum. Por outro lado, existem coisas que não vão para esse tipo de plano de conhecimento, principalmente por envolverem experiências sensoriais, afetivas ou sinestésicas, que demandam vivência. Sexo, por exemplo. A "primeira vez" é diferente para cada um, não dá para teorizar nem estabelecer regra. Festa de formatura. Casamento. Nascimento de filho. Enem.

Sim, no parágrafo de cima está escrito Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio, que eu fiz. Em resumo resolvi me reinventar, dar uma chance para a vida acadêmica (ou para o destino) depois de um longo tempo, tentar uma carreira nova, e me inscrevi para o curso de direito na UFMG. Por isso fiz o Enem, o exame é a "primeira etapa" do vestibular. Fui um entre três milhões que sofreram a prova, não tive problema algum. Assim como o Big Brother, no Enem o clichê "só quem fez sabe como é" é perfeitamente aplicável. São dez horas de uma prova não "difícil", mas "desgastante", à qual você dedica parte de seu tempo e algum fosfato. Como em toda avaliação, existe uma tensão em torno, a pessoa acaba por inserir seu emocional no processo e existem logicamente reações diversas. Humanos em estado de tensão, experimentação, avaliação, competição. À exceção do intervalo de tempo e do fato de não haver câmeras, o Enem é uma interessante experiência de "reality".

Para os "teóricos", a vivência do Big Brother é algo fácil que eles tirariam de letra. Para quem não fez o Enem (categoria na qual eu me incluía), a prova é algo idiota que qualquer um faz com o pé nas costas. Na verdade faz sim: desde que sentado no conforto do seu lar, com calma, tempo, comida e água. Lá, na hora que vale, só quem foi sabe como é, mesmo. Daí minha imensa frustração quando da notícia de que a prova havia sido suspensa (já cancelaram a liminar, mas o processo ainda não acabou, tudo pode acontecer). Eu me senti pessoalmente desrespeitado por terem pegado meu esforço (licença, sou egoísta), amassado como se fosse jornal velho e jogado no lixo. Entendo que, sim, pessoas se prejudicaram. Que elas devem, sim, ter uma nova oportunidade. É justo e a mim não incomoda. Mas é preciso mesmo que, para se fazer justiça, todos tenhamos de passar pelo desgaste uma vez mais? Qual o grau de compreensão da pessoa que decidiu isso? Em algum momento foi considerado que, além de estudantes do ensino médio, havia trabalhadores que faltaram no emprego, pessoas mais velhas que precisam da nota para uma colocação profissional, enfim, uma diversificada gama de cidadãos que investiram tempo útil e dinheiro naquilo? A decisão, arbitrária, veio de um "teórico". Que não sofreu aquela experiência e, talvez, não tenha apreendido bem a importância de sua decisão no campo emocional e profissional de três milhões de pessoas, nem todas elas adolescentes na faixa dos 18 anos.

Em uma situação ideal, no futuro, boa parte dos profissionais na ativa terão passado pelo Enem e serão mais condescendentes com erros. Que, por sorte e por sermos todos sujeitos a falhas, acontecerão. Do ponto de vista de quem "sofreu" a prova posso dizer que não há motivo para cancelamentos. Mas quem sou eu, mero "participante", para discutir com um "teórico", não é verdade? Por enquanto esperamos. Eu e meus colegas de cursinho. Em tempo: agora estudo à noite, razão do grande intervalo entre textos. Até breve!