sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Letra dedicada

Por vezes é de bom-tom recordar que apenas o fato de se estar vivo é, em si, uma grande vitória do dia a dia. Caem árvores, atropela-se, pessoas morrem cotidianamente aos borbotões. O ato último da morte é corriqueiro e cruel, mas dela preferimos não saber. Como se vivêssemos envidraçados e distantes da fatalidade.

Até que ela ocorre: em casa, na rua, na sua frente. E seguimos rejeitando a ideia, provavelmente por instinto natural de sobrevivência, e protelamos a consciência do morrer para o dito instante inevitável.

Se vivêssemos, hoje, abraçando a realidade de uma despedida futura, talvez deixássemos lembranças mais permanentes, e ainda menos sofrimento na hora da ausência. Porém o viver artificializado que nos envolve suprime as relações com o ato de morrer.

Velórios não se fazem mais em casa, não se passa a noite com a pessoa morta, não se chora na hora certa, tudo é assombrosamente limpo, estéril e padronizado.

Para a minha hora eu gostaria de choro, casa, café e noite em claro. Ganharei decerto a frieza e a assepsia de um crematório. Contudo não estarei lá para ver, então isso importa pouco. Sigo, de todo modo, cumprindo o desejo de sobreviver aos meus antepassados. Isso, e isso somente, deveria ser dever de toda geração mais jovem...

*Aos atropelados, eletrocutados, explodidos e caídos do dia de hoje, com respeito.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Texto entre anotações

Ainda ontem ou anteontem li por aí que não escrevo mais. Dei a resposta, rasa até certo ponto, de que as letras fugiram para algum lugar desconhecido. Como se fosse possível a gente, do nada, cruzar a rua e dar de cara com um "erre" fujão. Ou ainda bater papo com o "dábliu" no alto da Torre Eiffel, nós, as letras, e taças de champanhe.
As letras permanecem, o que falta, em verdade, é motivo para colocá-las em ordem, em sentido.

***

As letras são e estão permanentemente distribuídas dentro de um caça-palavras gigante, maior que aqueles das revistas de passatempo, e cabe a quem tiver um mínimo de disposição encontrar o termo que precisa, e como nos passatempos de cara encontramos uma palavra qualquer, meio óbvia, que colocaram ali justo para não termos sensação de total estupidez.
Mas o bom do caça-palavras é exato o processo de "achamento", de encontrar alguma coisa escrita de trás pra frente, ou em algum lugar totalmente inesperado. Mas o bom do ato de escrever é pegar as palavras encontradas e enfileirar, de modo que zebra, alumínio e estivador possam juntos criar um tipo de sentido. Mesmo que, por vezes, criemos algum tipo de desordem proposital, para brincar um pouco com a sua cabeça.

***

Agora como querer dar sentido, produzir sentido, abrir um canal de comunicação sem se ter o que dizer? Certa vez eu li um elogio que já repeti nos meus textos por demais, talvez não tão literalmente como agora: "[ele] tem uma capacidade incrível de atrair confusão/histórias interessantes. [...] Se bem que ele também tem uma enorme capacidade para transformar o cotidiano em causos inteligentes".
Pois bem, senhores, esse pequeno depoimento sobre minha pessoa externa uma característica estilística bastante peculiar, que a mim é cara e sobre a qual construí boa parte do meu trabalho enquanto escrevedor: a capacidade de analisar a cotidianidade, ou "o nada de todo dia", e transformar em algo de fácil digestão. Não que essa seja unicamente o meu modo de escrita, acho que ainda sou capaz de produzir algum texto dissertativo, talvez uma narrativa curta, jamais engrenei um romance, poesia não arrisco mais desde um incidente em 1990.

***

Sobre o incidente: eu sou um menino tímido. Tudo bem que metade das pessoas que eu já peguei tem sérias dúvidas sobre isso, e a outra metade tenha certeza que é mentira, mas no fim das contas sou sim. Principalmente quando diz respeito a me expor ao vivo em público. Já travei em um programa de debates na televisão, acredite. Não falei "gato" e fiz minha melhor amiga passar vergonha. Até hoje culpo o briefing, inexistente.
Em 1990, sétima série, aconteceu um campeonato de poesia e minha professora de português insistiu que eu me inscrevesse. Emprestou a máquina de escrever para eu passar a limpo, veja bem. Nascidos em 1990, naquela época computador era artigo de luxo, como as Ferrari o são. Escrevi o poema, sobre solidão, lindo e triste e simples para alguém de 12 anos. Inscrevi o poema, fui selecionado e tinha de [atenção senhores] declamar em público. Perguntem se eu apareci no dia? Desde então poesia nem nas aulas de redação. Até porque o segundo grau insiste na produção dissertativa como preparatório para o vestibular.
Deixo as equivalências de escolaridade a cargo do leitor. Ainda não internalizei ensino médio nem fundamental e nem o fim do pré-primário.

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O fato é: o que dizer quando não se tem nada a dizer? Qual a relevância de se insistir em episódios cotidianos repetidos a exaustão, sendo que não tenho vocação nenhuma para o dadaísmo? O que se pode inferir da minha ausência é: falta de assunto. Ou ainda: contaminação do meio. Se pudermos resumir tudo em cento e quarenta toques, exato qual público um texto longo teria? Se uma foto resume tanto, qual sentido faz escrever que tenho três cachorros dormindo no meu pé nesse momento?
Mais: corrupção do cotidiano. As novidades foram corrompidas pela banalidade do tempo em que vivemos. Hoje todos são especialistas em efemérides, capazes de imperativos categóricos sobre assuntos tão diversos quanto a sexualidade da zebra, produção de alumínio ou a proliferação de doenças sexualmente transmissíveis entre os estivadores do porto de Santos. Daí surge um grande suspiro, e a vontade de contribuir com um grande espaço vazio para a discussão.
Também: a falta do tempo. Ele às vezes transborda, principalmente naquelas horas antes das seis da tarde sexta, mas geralmente o tempo escasseia o suficiente para a gente acordar segunda-feira e assustar na quinta à noite. E, contrariando a premissa do blog, qualquer tempo, o tempo precisa ser aliado dos escritos.
Daí a razão do sumiço: não se tem do que falar, uma vez que hoje todos falam sobre tudo, e sou tímido o suficiente para me manter à parte, observando.

***

Uma nota: sim, eu sou foda. E sei que sou foda. E tirando essa linha você nunca vai me ver assumindo isso em público. E sim, essa nota é para você em especial.

***

Então ficamos assim: não há do que falar, mas na medida do possível, até como exercício intelectual, vou tentar voltar mais vezes. Talvez explorar o fato de que tenho colegas de sala. De que um é bombeiro, o outro luta vale-tudo, o outro é motorista e evangélico. De que existem pessoas com histórias para serem contadas e que estão surgindo personagens novos no horizonte.
E quando for bom e for conveniente, a qualquer tempo, nos encontramos aqui.

Trilha: Palavras não falam, Mariana Aydar. Música na qual esse texto foi inspirado e que estou ouvindo agora.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

A natureza astrológica

Algumas vezes na vida a gente faz besteira de modo acidental. Muitas vezes, se você achar melhor, afinal ninguém com cabeça no lugar faria besteira de caso pensado. Besteira, aqui, entenda não como ligar para ex-namorados às quatro e meia da manhã, mas algo mais simples. Como falar o que não devia ou, como no meu caso foi, consultar o horóscopo.

Há alguns anos, maio de 2008 para precisar data, comprei um mapa astral daquele site que todo mundo já cadastrou o nome para receber horóscopo personalizado no e-mail. Dois mapas: o mapa astral em si e um, que na época não era tão interessante mas vinha no pacote, o mapa profissional. Como eram dois por um, que mal faria em saber o que os astros diriam para a minha carreira? Mal nenhum, aliás.

Os mapas ficaram por lá em 2008 mesmo, e os horóscopos do site estão redirecionados para caixa de spam. Coisas do gmail. Até alguns dias atrás que, durante uma conversa envolvendo signos, re-lembrei que tinha um mapa astral guardado num site e fui ler a coisa.

Não pretendo questionar verdade ou validade de uma interpretação automática de um site baseada em números e dados [reais] fornecidos por mim, muito menos tomar o resultado como premissa incontestável ou, pior, impor uma visão totalmente cética e descartar qualquer informação apresentada. Mapa astral é, para mim, uma fonte parcial que você interpreta como quiser com base na sua vivência. Mas que existem elementos muito pertinentes e que gritam por atenção, existem.

Selecionei alguns trechos do meu mapa para uma discussão aberta de mim para comigo mesmo. Vejamos.

1. "Seu mapa apresenta uma configuração chamada 'locomotiva': os planetas se espalham por todo o mapa, ativando casas diferentes. Isso sugere que você tem mais talentos do que a maioria das pessoas; é mais livre para seguir a carreira que lhe vier à mente. É possível que você venha a ter muita indecisão na hora de optar por um caminho. A vantagem do padrão 'locomotiva' é que você termina assumindo um papel pioneiro, criando algo totalmente diferente, que lhe destaca do meio."

Começando pela afirmativa mais óbvia, presente em minha carreira profissional desde o seu princípio, realmente não sou pessoa de ficar quieta no cargo que me dão, e geralmente dou uma de dublê em outras funções. A questão da indecisão profissional é tão presente que, aos 30 anos, fiz um mapa comum a pessoas começando carreira (!!). Não quero martelar demais a parte elogiosa da coisa, para não ficar uma auto-reflexão egocêntrica em excesso.

2. "A sua opinião a respeito das coisas tenderá a ser considerada pelos outros, pois as pessoas percebem esta sua capacidade e emitir julgamentos sólidos. Deste modo, atividades em que você preste algum serviço de consultoria podem ser bastante úteis. Seu é o poder de avaliar, medir, julgar, fazer triagem."

Isso deve ser para quando eu ficar mais velho, porque hoje em dia não dou opinião em nada, e nem me pedem. Falando mais sério, não me sinto assim investido de uma capacidade transparecer tanta confiança para os outros. Talvez seja um ponto a trabalhar ou, talvez, a reconhecer.

3. "Você possui uma concentração de astros na quinta casa astrológica e tal posicionamento múltiplo favorece as atividades criativas e artísticas. Você possui um grande manancial criativo que pode ser bem utilizado e lhe conduzirá ao sucesso caso você se empenhe em aproveitar esta veia artística, persistentemente."

Outra coisa que não dá para discutir: estando, ou não, no mapa, eu aceito. Até porque coisa boa a gente não recusa ouvir, principalmente de um programa automático pago para isso. Seria um item bobo, não fosse a informação seguinte.

4. "Vale lembrar que a Casa 5 é a casa dos jogos, das brincadeiras, dos folguedos. Para você, a atividade profissional tem que ser necessariamente alguma coisa na qual você se divirta. Fazer as coisas por obrigação faz um mal terrível à sua saúde psíquica. Lembre-se sempre disso ao escolher suas atividades! A sua necessidade de expressar a criatividade é vital e uma vida em que não lhe seja permitido fazê-lo seria muito triste."

Eis a grande dimensão da besteira, explícita e escarrada em minha frente desde pelo menos três anos atrás. A coincidência de resgatar um suposto ponto fundamental para a minha felicidade profissional em contraponto com a minha atual não felicidade profissional. Estado esse, de não felicidade, que eu estava bem perto de me resignar, apesar de um excesso de indignez-vous que andei lendo e que será abordado depois, bem depois, quando o meu coração estiver mais sossegado. [Indignez-vous é um livro de Stéphane Hessel, e uma resenha em espanhol pode ser lida clicando aqui.]

O fato é que um mapa astral [e poderia ter sido um livro, um filme, um doido na rua], catalisado pelo estado entranhado de direito de se indignar [recomendo, mesmo, dar uma olhada no Indignez-vous], fez com que eu retomasse meus questionamentos com relação ao grau de suportabilidade da não felicidade. E veio como notícia de gravidez inesperada. A gravidez pressupõe concepção, mas na hora de conceber a gente nunca lembra isso, e assusta com a notícia como se fôssemos todos castos. E como uma notícia de gravidez, inesperada, não sei como lidar agora. E culpo o mapa astral.

5. "Você reúne uma singularidade de traços planetários que sugerem aptidão para o conhecimento e a interpretação de símbolos, daí a afinidade com as 'logias', o estudo dos mitos, a psicologia, a astrologia. A visão ampla é marcante, o que lhe permite certo 'distanciamento' do mundo ao redor, qualidade tão necessária a quem pretende interpretar símbolos. Ainda que você não venha a trabalhar com isso, que tal estudar astrologia, nem que seja como um hobby? Ela poderá lhe ser útil em qualquer área que você porventura venha a atuar! É possível também que você se dirija somente à psicologia ou à psicanálise, mas você sentirá que 'algo lhe falta', daí a busca por algo 'alternativo'."

Para finalizar os highlights, o mapa me manda fazer astrologia. Ou seja, estivesse eu com a cabeça um pouco menos [ou mais] no lugar, chutava o balde amanhã, incorporava a Leiloca e ia viver de mapa astral. Brincadeira à parte, esse é outro traço de personalidade que não incorporei ainda. À exceção do estudo de mitos, que amo, nenhuma psicologia ou psicanálise aplicada fazem parte da minha vida. E no campo esotérico o máximo que fiz foi ler um baralhinho de tarô.

Enfim, assim como eu mesmo já escrevi algumas vezes, o tempo dirá. Até lá, ou até quando eu resolver minhas questiúnculas com a vida, tudo permanecerá o mesmo. Ou, no máximo, em suspensão.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Reflexões sobre o pão de queijo

Polvilho, óleo, ovo, leite, sal e, logicamente, queijo. Qualquer mineiro, sujeito nascido no Estado de Minas Gerais, tem noção da receita do pão de queijo, mostrada em uma dezena de versões pelo Terra de Minas ou apreendida na cozinha da avó. Nem todos sabem fazer, mas a receita do pão de queijo deve vir transferida por herança genética, ou embutida em alguma vacina obrigatória de infância.

Fato é que, andando pelas ruas das cidades aqui de Minas, você vai invariavelmente dar de cara com alguma padaria, boteco ou birosca vendendo pão de queijo. Não que gasolina de mineiro seja o pão de queijo, se você perguntar a um mineiro aleatório ele com certeza vai dizer que "nem tanto pão de queijo assim" come, mas o mineiro, sujeito nascido em Minas Gerais, vive em uma dimensão na qual o pão de queijo está disponível em qualquer hora e virou jingle (olhe pro céu / veja se amanheceu / vai por na mesa / um pão de queijo quentinho / é bom demais da conta...).

Mineiro é assim, cercado de pão de queijo por todos os lados. E mente que não consome. Resolvi fazer a contagem do meu consumo de pão de queijo nos últimos dias. Domingo, café da manhã, minha mãe assou um pacote. Ontem à noite, fome emergencial pós trabalho, um pão de queijo de boteco. Outros dois hoje porque não tomei café da manhã e passei em uma lanchonete aqui perto, que faz o melhor pão de queijo da região. E isso é porque, realmente, não como tanto pão de queijo assim, ou seja, sou um alemão que bebe pouca cerveja.

Daí ser pertinente a ponderação da minha professora de Filosofia, razão, em essência, desse texto aparentemente sem pé nem cabeça:

"Você vai viajar. Adora a ideia, ver um lugar diferente, passear, sair dessa cidade, espairecer a cabeça. No primeiro dia é aquela alegria. Segundo dia, beleza. Dá o terceiro dia começa aquela ansiedade, daí você vai e fala: mas como essa cidade não tem um pão de queijo? Não adianta, ser humano sente falta do hábito."

E como negar? E como negar que a comida da sua mãe só não é melhor que a da sua avó, como negar que você gosta sim de usar aquela roupa velha e de dormir no seu colchão que até já afundou no contorno do seu corpo? E por que negar que festa de família é um saco mas você vai assim mesmo, e gosta quando está lá, até sair a primeira briga. E daí você fala que não volta mais, até a próxima festa, e sai de novo e de novo reclamando que o tio Fulano vive enchendo o saco?

Somos, os mineiros e os outros, indivíduos extremamente arraigados a nossa segurança, ao conforto do todo dia, à possibilidade de comprar pão de queijo em qualquer bar de esquina. Em outra mão, tentamos ser transgressores: vamos fazer pós-graduação na Europa, e lá não tem pão de queijo. Mas pedimos pelo amor de deus para a visita trazer um pacote de polvilho. Rompemos com tudo para trabalhar fazendo pesquisa na Antártida, e sentimos saudade do cheiro do arroz com feijão da casa da mãe. Assim fazemos e permaneceremos, até nascer uma nova raça.

Nunca fui avesso a tradições (nem a comfort food). O cotidiano é minha zona de segurança, suficientemente solidificada, em um patamar que, por hoje, afirmo: "não sei viver em um universo no qual não exista o pão de queijo". Daqui algumas luas posso mudar de afirmativa, jogar tudo para o alto e me (re)redefinir. Porém, se me conheço, vou carregar uma sacola com queijo Minas e polvilho para qualquer lugar aonde eu for.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

De novo o pato, a morte... e a tulipa

Há algum tempo escrevi aqui sobre uma peça de teatro, chamada Mas que história é essa? Era setembro do ano passado. De lá para cá algumas coisas mudaram: eu li o livro, e a Morte fez um breve passeio por perto. De todo modo, a peça vai entrar em cartaz de novo, por um dia. E vale a pena revisitar, reler, e levar as crianças.

"Viemos ao mundo para amar a vida."

Pensamos ser difícil ensinar Filosofia a crianças... Talvez não o seja. Talvez seja fácil por demais. Porque as crianças têm uma imensa capacidade de assimilação, de absorção daquilo que a elas é interessante. Difícil, então, não deve ser ensinar. Filosofia, Astronomia, Matemática, Literatura, não importa, a criança é capaz de aprender. Desde que, claro, você desperte a sua atenção e a mantenha interessada. Só que isso, prezado, é tarefa de profissionais.

O pato, a morte, e a tulipa em questão não são – mas o são – os personagens dos livros de Erlbruch. E não o são porque oficialmente não os li. Até tentei, não tinha na loja. Mas são, vieram dos livros e subiram no palco, delicadamente apropriados pela Érica [Lima]. Pato e Morte estão dentro da história que a Érica quer contar. Que é uma história sobre contar histórias. Ou, ainda, sobre como encantar as crianças.

Confesso que, enquanto ator, sou um clown frustrado. Apesar de nunca ter trabalhado ou desenvolvido meu clown, [acho que] sei que o meu personagem vai parar na linhagem dos tristes. Imagino meu clown como aquele palhaço horrível das gravuras da década de 1970. Assistir a um trabalho de clowns, para mim, é exercício que demanda paciência, desprendimento e desapego.

Mas que história é essa? [a peça de teatro] começa justo com dois clowns. Dois atores totalmente seguros de seu trabalho, e eu pensando em quanto de pirueta e acrobacia, e morrendo de inveja do condicionamento físico dos dois, e trabalho de cena ia ter de ver. Até que.

Até que tudo deixa de ter importância e, assim, na história de dois clowns contando uma história sobre contar histórias – que, juro, pensei que ia ter de passar óleo de peroba no rosto, fazer cara de paisagem e dizer que "é interessante" –, de repente a gente vê que o circo todo é montado para – perdão o trocadilho infame – cairmos como patinhos na rede armada pela autora [a Érica Lima], diretores [Marcelo Xavier e a própria Érica], elenco [Marcus Vinícius e Rubens Ramalho]. Somos plena e ludicamente encantados, adultos e crianças da plateia, para mergulhar em águas um pouco mais profundas. Como marinheiros que ouvem o canto das sereias.

Uma vez nós, público, devidamente rendidos, os atores nos têm na palma da mão. E abusam, dando vida a um Pato – que de pato, fisicamente, só tem o nome – e à inevitável, aquela que está sempre ao nosso lado (e por isso nunca se atrasa), a Morte. E nos fazem presenciar esse encontro, um tanto quanto inusitado, e a refletir sobre o sentido da vida. Cada qual de seu modo, adulto, criança, pato, somos levados a pensar na grande questão de para quê (ou por que) vivemos. E a resgatar a lembrança da finitude da vida. Tudo com uma grande (e abusada) delicadeza...

A Érica [Lima] deveria escrever mais. Deveria atuar mais também, mas isso fica entre eu e ela. Mas que história é essa? está pronta para começar. Se eu fosse você aproveitava a jornada... até mesmo sem levar criança alguma. Afinal, o espetáculo definitivamente não é só para elas.

Mas que história é essa?, uma produção do grupo Real Fantasia, está em cartaz no Teatro Dom Silvério, mas só no dia 7 de maio... A entrada (inteira) custa R$10, e não dá pra perder!

E a tulipa? Bem, a tulipa...

terça-feira, 12 de abril de 2011

Conjecturas

Toda criatura humana, seja na escola, na faculdade, numa notícia de jornal ou em algum livro qualquer, pelo menos uma vez na vida vai se deparar com o termo Filosofia. Nem que seja em letra de música, mas vai. A palavra pode passar batida para muita gente, mas acontece para algumas pessoas o estudo das ciências humanas. Aí não tem jeito, a sombra da Filosofia vai estar por lá, reinando perene com Aristóteles, Kant, Descartes e seus amigos.

Ano passado [e, creio, esse ano ainda] foi preciso retomar algum estudo filosófico, coisa que não fazia há dez anos pelo menos. Mas Filosofia a gente não esquece. Ela só fica guardada em algum compartimento empoeirado, no meio dos 90% do cérebro que não usamos, pronta para ganhar um espanador, um pano úmido, um lustra móveis.

Assim, junto da Filosofia, ponto de partida de minhas conjecturas, chegam duas palavrinhas associadas, como quem não quer nada, que marcam a vida da gente igual lastro de rio: felicidade e dignidade.

Seu professor de Filosofia, se você o teve, deve ter contado que a grande missão do pensamento filosófico é a busca da felicidade. Sob diversos aspectos e teorias, quer através de atitudes altruístas, egoístas, utilitaristas, estoicas ou que as valham, os modos de se alcançar a felicidade serão nosso tema de trabalho.

Não vou me dar a árdua tarefa de definir felicidade. Ela não existe, já disse algum nosso colega dos tempos de colégio, talvez nós mesmo. Ou só existem na vida momentos felizes, disse outro colega. Deixemos a definição para os grandes e vivamos o caminho da busca. A busca, essa eterna, que bobear não acaba nem depois de morrermos. Busca que pode, e deve, ser pontuada por momentos de satisfação.

Não creio na dor, opinião pessoal, e penso que ninguém sente dor por opção. Nem mesmo o masoquista. Não compreendo masoquistas, sádicos e prazeres semelhantes. Aceito os sofrimentos impostos pelo "perpétuo vai e vem de elevações e quedas" (Sêneca) da vida. Mas não creio na dor, no martírio, na opção voluntária pelo sofrimento. Seja o mesmo físico, psicológico ou transcendental. Se existe um deus, no qual acredito e me espelho, esse deus não poderia querer a institucionalização do "choro e ranger de dentes" para toda a humanidade, na qual me incluo.

Isso posto, cabe a mim enquanto escrevente dessas conjecturas, elencar um pequeno paradoxo: "se algo traz dor, e pode ser evitado, por que aceitar?". Existe uma diferença grande entre "aceitar as coisas como elas são", princípio filosófico, e "suportar as coisas por medo do desconhecido". Acontece que, em muitas vezes, a última situação é justificada com base na outra.

Tomemos um exemplo pessoal. Se estou falando de perder medos nada mais correto que trazer à baila histórias de vida. Porém, para não perder o ritmo dissertativo, troquemos o pronome pela abreviatura: "M".

M começou a trabalhar em um lugar. M teve medo, na época, de mudar o emprego, mas era boa perspectiva e foi. M gostava do lugar em que agora trabalha. Só que, com o passar do tempo, as coisas mudaram em duas vias. Em paralelo ao aumento da demanda do trabalho de M, que acabou por aprender uma coisa ou duas, vieram pequenas sanções a M e todos os seus colegas.

No lugar em que M [ainda] trabalha, tudo começou a complicar. Detalhes. Sempre eles. Um exemplo: se M precisava ir ao médico, aquele tempo não era computado como ausência. Hoje [porque, afinal, é a lei], M precisa deixar compensado o período. Nada ilegal, repito. Na semana que vem, M vai tirar seu dente de siso, o último. O deslocamento entre o lugar de trabalho e o dentista deve ser previamente compensado, na forma da lei. Mas M não recebe seu controle de ponto há mais de mês...

No lugar em que M [ainda] trabalha, tudo acontece conforme as regras e todos se orgulham disso. O lugar em que M [ainda] trabalha é legalista por definição. Questionamentos se resolvem, repito, na forma da lei. Com isso, no lugar em que M [ainda] trabalha, as pessoas se transformaram. Perderam a parte boa do lado humano para não perder emprego. Todas, ou quase. O próprio M está diferente. Olhando de fora, diriam que M está pacífico. Por dentro, M se sente extremamente passivo. Não participa, acata. E junta muitos papéis. M está cada vez mais cinza, cada vez menos M.

Agora, no lugar em que M [ainda] trabalha, resolveram atacar a única parte que M acha boa [boa mesmo, não uma parte boa pelas metades]: a sua cabeça. Querem que M seja só corpo, querem que M deixe de pensar e se especialize como o apertador de parafusos do Chaplin. "Encaixotando M." Mas M, que sempre aceita, que sempre aceita, que sempre aceita, sabe exato o seu ponto de tolerância. M não nasceu para trabalhar na indústria. E está pensando o que fazer. E está pensando tanto, mas tanto, que resolveu contar sua história de forma, digamos, um tanto quanto pública e passível de arrependimentos.

Voltando à questão da felicidade, o que você faria no lugar de M? Não é que ele esteja infeliz, chorando pelos cantos em agonia. Feliz, porém, M não está. Nesse momento, M vive na temperatura "morno", aquela coisa indefinida que ninguém assume mas tempera o banho de boa parte da população. M está morno, nem frio nem quente.

A resposta ao que fazer vai, necessariamente, passar pela sua paciência em ler um texto gigante como esse e se contextualizar; vai passar também pela sua experiência de vida. Caso você seja casado, com filhos, seu pensamento seria "fica lá até achar outra coisa melhor". Obviamente isso levaria ao continuísmo sedentário, e a espera de outra coisa vem a ser mais ou menos eterna. Se você tem por volta dos 20 anos, diria ao M para "chutar o balde" e foda-se. Mas, aí, como M pagaria as suas [muitas] contas?

M, ou eu, não sabe muito bem o que fazer. Porque até pode não parecer, mas M tem, acima da submissão passiva, o grave defeito de ser teimoso. M é arraigado a seus valores e compra briga quando ofendem seus poucos princípios. Aí entra o ponto da dignidade que citei lá no começo.

Vou pedir um pouco de licença e citar dois trechos curtos da Constituição do Brasil. Juro que não dói: "Art. 1º A República Federativa do Brasil tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana; (...)". Pois é. Os deputados que escreveram a Constituição andaram lendo algum livro de Filosofia. E mais: "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (...)".

No fim do ano passado, lembro bem, tive de fazer para o Enem uma redação sobre trabalho e dignidade da pessoa humana. Totalmente diferente desse texto de agora, mas o sentimento de não-felicidade era semelhante. Comentei com alguns que me vi hipócrita em colocar no papel que os indivíduos deveriam buscar a felicidade no trabalho enquanto eu mesmo não me sentia feliz na condição atual. Mas sublimei. Por medo.

Agora, e resumindo, a questão é outra. É colocar no papel meu medo de passar fome [extremando a situação] versus valores que definem a minha personalidade, a minha hombridade e o meu caráter. É pensar que a vida, mais uma vez, pediu para eu marcar um xis na opção que achar melhor, e sustentá-la. No fundo eu, ou M, sei bem o que fazer. Falta ela, a coragem.

terça-feira, 8 de março de 2011

A morte do pombo

Então como que do nada, os pássaros recomeçaram a dar sinais em minha vida. Há muitos, muitos anos, me ensinaram a ler o voo dos pássaros. Faz tanto tempo que não lembro mais bem como era... algo relacionado à quantidade de pássaros que avistamos no céu.

De todo modo importa pouco. Sempre deixei os pássaros [e não as aves de um modo geral] para um plano secundário. Gosto explicitamente dos cães, e sou a favor de pássaros fora das gaiolas. O que logicamente não impede que eu já tenha tido um casal de periquitos e um coleirinho, e havia um melro na casa dos meus avós paternos. E um papagaio na casa da mãe da minha mãe.

Agora, quase nesse instante, tem um bem-te-vi na janela comendo banana. Pelo que entendi, a minha mãe coloca um pedaço de banana todos os dias na janela, e o passarinho vem comer. Recordo que não gosto dos bem-te-vis; esse, contudo, me pareceu bastante simpático. O suficiente para chamar a minha atenção para o fato de que os pássaros, em todas as formas, estão de volta.

Geralmente associados à fragilidade e à impermanência, em minha vivência, os pássaros costumam me lembrar que as coisas são finitas, que vão e vêm sem precisão. As coisas não são precisas, e os pássaros remetem a isso. Tudo pode deixar de ser de uma hora pra outra, ou pode vir um vento forte e levar o passarinho para outra direção.

Diferente do filme do Hitchcock, no qual os pássaros surgem sem qualquer motivo, normalmente noto a presença dos animais de asas quando estou em algum tipo de entrave pessoal. Minha crise, dessa vez, não é exatamente pública. Ela existe, mas veio intrincada de um modo que ainda não achei a solução simples para resolver o fato. Ela existe e me deixou mais duro e bem menos sociável. Tendo em vista que dar as caras não está na lista de meus esportes favoritos da vez, a situação anda bastante complexa.

Mas vamos à cena. Descendo da casa da minha avó, perto da praça da cidade, um bando de pombos no meio da rua, alvoroçados. Todos agrupados provavelmente em volta de alguma comida. Todos no meio da rua, sem se importar com o resto do mundo. Veio um carro, atropelou e matou um dos pombos. E eu vi. E eu ouvi o barulho da asa se quebrando, eu vi a morte do pombo. Estranhamente o carro atropelou o único pombo branco do bando.

Não chorei pela morte do pombo, mesmo tendo sido cruel, mas não gosto de mortes de animais. Não mato galinhas [o que não quer dizer que eu não seja carnívoro – ou hipócrita, como queiram], não gosto de touradas. Nem de pescar eu gosto. Mas não chorei pelo pombo. Porque seria, de certa forma, chorar por mim mesmo, e ainda não é a hora disto. O pombo. Ali, estatelado. O pombo foi de certa forma mais um sinal, avisando que está na hora de seguir adiante. Que ficar parado, no meio da rua, mesmo que seja em torno de um monte de comida, é pedir para ser atropelado, ainda que inconscientemente.

Então façamos valer o sacrifício do pombo e tentemos, ainda que seja apenas tentativa, deixar toda uma falsa segurança de lado e buscar algo além. Afinal, para que servem as asas?

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Inveja do tempo

Saindo atrasado e impaciente de casa, tento pegar táxi no lugar de sempre e a rua está, como em todas as sextas-feiras, inviável. Mudo o endereço e vou pegar o carro de praça em meio a um fluxo de gente digno de compras de Natal. E ônibus, muitos. Culpa de quem não sai de casa na hora marcada é trânsito ruim. Que o digam as manhãs de segundas e sextas. Dentro do táxi — e já sabendo que vou invariavelmente chegar fora do horário no trabalho como em todos os outros dias da semana — o motorista comenta sobre a falta de tempo.

Ele, diz, está há vinte anos na praça e antes tinha tempo para fazer suas corridas mais um monte de coisas. Hoje gasta o dia por conta do trabalho. Quase respondi eu também ao chofer, mas preferi render o assunto escutando o homem. Que (sorte) não estava com a Rádio Itatiaia ligada.

Sabemos que nosso tempo livre escasseou. A impressão que tive é que, como antes meus horários eram poucos para estudar e fazer nada, isso seria reflexo do ato de ficar adulto. Mas como um senhor na casa dos seus 50/55 anos, ainda não em vias de aposentar porém ao mesmo tempo com uma carreira de taxista bastante extensa, chega à mesma conclusão de alguém (no caso eu), com uma faixa etária diferente? Aí veio o medo: será que aos 55 anos estarei trabalhando muito mais que eu hoje aos 30 e poucos, o suficiente para reclamar que aos 30 a vida era mais folgada?

A situação piora um pouco quando me pego pensando que em novembro completo 15 anos de carreira no mercado editorial. Comecei em 1996 e olhando por esse viés os meus tempos ditos "livres" (e eram livres, eu ia ao cinema à tarde) foram também pontuados por trabalho. Ou seja, eu trabalhava, estudava, matava aula para ir ao boteco, marcava presença em festas e tinha o hábito de não sair sextas nem sábados, porque eram dias para amadores. Na verdade continuo achando isso.

Quando passamos minha vida para 2011 a rotina é casa, trabalho, cinema algumas vezes, casa. Deveria ter academia no meio do caminho, terá... (fazendo força para acreditar). Fim. Minha vida não tem festas maravilhosas ou baladas que viram a noite ou episódios memoráveis que renderiam roteiro. Daí a inveja.

Passeando por perfis de conhecidos (reduzi meus amigos para cerca de uma mão), todo mundo tem festa todo dia. Todo mundo é lindo, todo mundo tem mais dinheiro que eu, todo mundo pode tudo. Festa na terça? Estamos lá enchendo a cara — e não me perguntem a fórmula mágica para trabalhar na quarta-feira. Feriado? Emendamos. Férias? Três vezes por ano, pelo menos, com direito a uma viagem internacional e chuva de fotos. Et caetera. Fica a sensação de que o mundo inteiro é mais legal que você.

Conversando com uma amiga (tenho cinco dedos na mão) ela comenta que na verdade a gente tem uma sensação ampliada do que é de fato real. Que não, as pessoas não são tão interessantes quanto aparentam ser. Que não são tão bonitas quanto parecem, aliás. Mas mesmo assim fica para mim a impressão de ter deixado o meu bonde correr, e jogando para um devir pequenos prazeres que deveriam estar sendo aproveitados agora. Fica uma grande inveja de quem consegue administrar o tempo, ser lindo, descolado, bem relacionado e pagar todas as suas contas. Nesse quesito estou verde, muito verde.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

(Re)começar. De novo...

Então foi assim: todo mundo acreditava, todo mundo meio que dava como certo, todo mundo menos eu. De algum modo o roteiro estava perfeito e redondo demais para simplesmente acontecer assim, quase como em um piscar de olhos. Estudei? Sim. Talvez não tanto quanto os 200 selecionados, mas estudei. Só que um 15 (em 100) na Geografia mandaram o recado de "agora não".

Foi, literalmente, a primeira vez que não passei no vestibular (até quando não queria passava). Sendo coerente com meu texto anterior, as provas estavam tranquilas. O suficiente para eu ter certeza que fui bem – até conferi as correções dos professores de cursinho e meu texto batia com as respostas. Mas quem corrigiu a prova devia estar de mau humor, ou, provavelmente, como me disseram, faltaram os termos chave.

De todo modo, tentando superar o trauma e encerrar esse assunto de vez até agosto, foi válido. Para me despojar de qualquer aura de soberba que provavelmente incorporei e, talvez muito principalmente, para dar valor à coisa quando ela acontecer.

Agora é tempo de equilibrar tudo e tentar correr fluido. Voltei a malhar, quero ver se retorno a um peso razoável e deixo a forma de barril para trás de vez; voltei a escrever, aqui pelo menos; tenho novos projetos que incluem, também, novo Enem e novo vestibular. Medo de fazer de novo não tenho; preguiça muita ainda. Mas é preciso e – quem sabe – daqui seis, sete anos eu não diga "olha, ainda bem que não passei de primeira". Aguardemos.

Trilha: cd Quanta (1997), do Gilberto Gil.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Do vestibular

Belo Horizonte, todo começo de ano, tem uma campanha de popularização do teatro, com ingressos a preços populares para ninguém ter desculpa de não assistir pelo menos uma peça. Logicamente são rios de comédias, algumas anos a fio em cartaz como se fosse na Broadway, mas dá para peneirar algo interessante. Foi assim, por conta da campanha, que fui assistir à adaptação local do livro Máquina de Pinball, da Clarah Averbuck.

Essa não é outra crítica teatral, não sou Barbara Heliodora e não tenho pretensões a. Na verdade a citação à peça é para justificar de onde vi alguém falando que brasileiro tem neurose para chegar na frente. Então, foi lá. Um trio de atores dizendo que enquanto americano, europeu, tem fobia de terrorista, a neurose do brasileiro é esta: chegar primeiro. Sentar na cadeira da frente. Ocupar o banco mais alto do ônibus. Meter o carro em qualquer brecha de asfalto na rua para chegar antes, sabe-se lá o porquê. Só que é verdade e a gente alguma hora tem de parar para pensar qual tipo de educação damos, já que mudar cabeça de velho é mais difícil. Enfim.

Vestibular.

Comprei um livro do Luis Fernando Verissimo (Mais comédias para ler na escola) e ele fala em uma das crônicas do suplício do vestibular; que todo ano é aquele festival de cenas de gente chorando com o portão fechado no último minuto e os que terminam a prova ficam olhando para o infinito com "aquele ar de sobrevivente da Marcha da Morte de Bataan". Verissimo comenta também o personagem "mãe de vestibulando", geralmente uma figura mais nervosa que o próprio filho.

Daí que esse ano fiz vestibular. Eu que não tenho filhos e provavelmente não terei, aos 33 anos envolvido com dilema adolescente do mesmo jeito. Tirando que a coisa toda era "para mim". Eu, que não tenho diploma universitário (fui universitário, só não concluí o curso), resolvi dar uma chance ao acaso e — por que não? — mais uma vez me reinventar. O resultado ainda não saiu, parece que soltam a lista no fim do mês, mas tiro algumas conclusões óbvias. De que idade ajuda muito na hora de fazer a prova. E de que a coisa não é tão difícil quanto parece. Posso, claro, ter tirado um zero federal nas provas discursivas; o que não vai me impedir de dizer que elas são, até certo ponto, tranquilas.

Portanto qual seria o grande problema que transforma o tal concurso no purgatório de pais de adolescentes? (Porque os filhos, senhores pais, estão nem-aí para prova, fiquem sabendo... Eu estava lá.) Na minha opinião são pelo menos duas as razões do pavor. De que o filho seja burro (e com isso prove que os pais não cumpriram o seu dever social de educar — como se passar em vestibular fosse o exemplo supremo da educação). E, claro, a neurose tupiniquim que me mostraram na peça. Mas como assim meu filho não está na lista? Não está, senhora, não está. E agradeça porque ele não está e vai poder passar pelo menos mais um ano amadurecendo.

Admiro o hábito em alguns países (estou com a Inglaterra na cabeça, deve ter outros) de os filhos tirarem um período sabático antes de começarem os estudos ditos profissionalizantes, seja curso superior ou não. Eles vão viajar, passam um tempo em outro país, trabalham, vivem suas vidas. Porque, gente, hipocrisia de lado, aos 17-18 anos (idade que eu entrei na universidade) a garotada quer mais é beber vodka vagabunda, beijar na boca (mais de uma por noite, se puder), fumar sabe Deus o quê, tudo menos estudar. E estão todos exercendo seus plenos direitos de jovens recém-livres e emancipados. Vão quebrar a cara, claro... Quebrar a cara também é direito adquirido.

Mais uma vez em minha opinião, deveriam estabelecer idade mínima para se entrar na faculdade. Tem idade para dirigir, idade para beber, idade para ser Presidente da República; que estabeleçam faixa etária para universidade. Não precisa muito, 19 anos e está bom. Nem seria tão polêmico assim. E que nesse intervalo as pessoas possam acumular um pouco mais de bagagem. Para não dormir na aula de filosofia, ou para não ir fazer prova de política completamente de ressaca. Para pensar naquilo que realmente querem. Para poderem aproveitar melhor o dito curso superior, seja ele público ou não. E principalmente para darem um retorno de qualidade à sociedade. Não fiz pesquisa, mas alguém aí arrisca dizer quantos conhecidos fizeram uma faculdade e não exercem a profissão registrada no diploma? Então.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

O correto insuportável

Ontem na fila do teatro encontro uma antiga conhecida, professora universitária que nunca me deu aulas, apesar de eu ter estudado no mesmo curso e na mesma faculdade que ela até hoje trabalha. E nos pegamos maravilhosamente conversando sobre como a vida cria mecanismos para ficar cada vez mais, na falta de um melhor termo, chata.

Era peça infantil e a produção resolveu dar os programas (que tinham uma máscara para recortar e usar depois) somente às crianças. Nem eu nem ela temos filho e logicamente ficamos sem programa. Nisso ela solta que quase disse ser minha mãe e que eu tinha problema mental, para sensibilizar a moça da produção, mas ela achou melhor não fazer, porque dizer que o filho é retardado nos dias de hoje é politicamente incorreto demais e bobear dá processo.

Aí me lembrei da reportagem que havia passado no jornal do almoço, uma psicóloga dizendo que não pode mais colocar apelido em criança. A dona provavelmente deve ter passado por um bom trauma nos tempos do colégio, ela transmite todo um background de quem era da turma dos excluídos no colégio. Desajeitada, coitadinha, a gente lá em casa de cara colocou nela um dois ou três apelidos de mulher feia.

E comentamos também que está cada vez mais difícil contar piada. Não pode preto, não pode veado, não pode mulher. Também não tem muito mais como contar história, porque negro malvado não pode, mulher vilã não pode, todo mundo tem de ser bonzinho no fim das contas. Tudo precisa estar politicamente correto, ter uma lição positiva, educar para o bem. O que é extremamente chato.

Mal a gente sabia que estava para assistir a uma grande mudança de sentido. A peça, Os Saltimbancos, de cunho político, subversiva, completamente contra o sistema, quase de fundo comunista, ganhou viés ecológico. Os malvados, antes apenas "patrões", agora são traficantes de animais! Como assim... Para quê, com que razão?

Não consegui manter a cara boa para o resto do espetáculo. Chico Buarque se visse aquilo deveria era meter um belo processo. Uma educação antissistema, que sobrevive à censura ditatorial e tem lugar na memória de toda uma geração que hoje é composta por pais e educadores, não merecia tanto desacato. A única coisa que quis fazer depois do espetáculo foi fugir. Afinal não podia compactuar com aquela merda. Os Saltimbancos, que venceram a ditadura e ganharam versão dos Trapalhões, rendidos ao politicamente correto. Uma pena. E é chato demais isso. Tomara que não perpetue.

No player o cd que acabei de comprar, John Lennon, Power to the people (edição remasterizada de 2010 com dvd).

Pissed

Geralmente escrevo uma lista, no começo do ano, de coisas a fazer. Dieta, estudar, malhar, aprender a dirigir. E de coisas a comprar. Mac book air. Mas resolvi fazer, de cara, a lista das coisas que têm-me irritado atualmente. Verdade é que ando fácil de contrariar, mas verdade maior é que ando sem tempo ou fôlego de expurgar minhas irritações na esteira ergométrica. Então, à lista:

1. Primeiro lugar absoluto para gente que reclama de tudo. Seja o ar condicionado ligado, seja o calor, seja o cheiro do detergente, enfim, minha grande irritação hoje em dia está em gente chata. O que ando fazendo para mudar isso: nada, mas resolvi que em meu futuro escritório o ar condicionado ficará a constantes 20 graus e que provavelmente muito poucas mulheres trabalharão comigo. Só as que tiverem um visom em casa, o que não é ecologicamente correto.

2. Reunião. Não aguento mais pelo menos uma reunião semanal para discutir besteira. Soube de fontes seguras que na última semana, enquanto eu estava de cama, fizeram reunião sobre o uso de clipes de papel, o que é mais nonsense que a reunião do número 2 do ano passado. Estou a uma vírgula de sair da sala na próxima reunião inútil, sob o prejuízo de me acharem mais doido que o habitual.

3. Telefonemas de telemarketing. Está na lista porque recebo pelo menos um por dia. Mas já não atendo, graças ao identificador de chamadas. Coitados dos meus amigos de SP se trocarem de telefone e ligarem avisando. 95% das ligações são de lá.

4. Gente inútil e/ou sem iniciativa. Chances altas de serem meu próximo estouro, daqueles em que vou baixar meu lado B adormecido e soltar gritos para ouvirem do outro lado da rua. Também, provavelmente, quando eu o fizer, dirão que enlouqueci e acabará em demissão por justa causa.

5. Prazos apertados. Ok que eu vivo com prazos apertados desde o primeiro dia de trabalho. Porém vejo para breve um dia que não vou mais cumprir um prazo e vai dar merda. Muita.

Resumindo, dos cinco quesitos de irritação acima, quatro estão diretamente associados ao meu trabalho. O que significa que perdi vida social, certamente, e que está na hora de reavaliar o meu emprego. O ano dirá. Ou a minha primeira surtada de 2011 dirá. Ou pularei fora do barco.

Trilha: Kate Bush, The Song of Solomon (1993).

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Chacoalhando

Na década de 1980, quando algumas pessoas eram crianças, eu inclusive, existia um tipo de medicamento parecido com xarope que se chamava "remédio em suspensão". Tinha uma parte líquida e uma parte mais sólida e a mãe da gente, na hora de servir, chacoalhava para misturar. Lembro de um sabor morango. Pois bem.

[Acho que não é a primeira vez que uso a analogia com o remédio em suspensão para retomar os escritos após um hiato. Mas tenho 99% de certeza de que essa ideia não é exatamente inédita, alguma criatura no mundo já fez a mesma comparação e ninguém vai voltar no tempo procurando algo que escrevi antes só para conferir. Eu não vou.]

Assim como o remédio, em suspensão, minha vontade de escrever estava parada, precisando de algum tipo de agitação para desencadear qualquer iniciativa. Porém pela lei da inércia algo que está parado tende a permanecer parado, a preguiça impera, a gente arranja tempo para tudo menos escrever, lá se foram meses. Nesses dias, enquanto produção escrita, dois textos para esse blog apagados no primeiro parágrafo, uma redação para o Enem, questões de vestibular e só.

Não pretendo relatar tudo o que aconteceu comigo nesse intervalo de tempo, não faz muita diferença ou, melhor, cabe em pouco espaço: engordei como um porco na ceva, fiz cursinho, estudei mediocremente, fiz vestibular, arranquei dente [e fui a um show de metal]. O resto não importa.

Importa de hoje em diante. Quero restabelecer um mínimo de rotina saudável (mental e fisicamente) para mim, e escrever faz parte do processo. Ajuda desde a tirar da cabeça aquelas coisas cotidianas, picuinhas que nos deixam doidos, até a refletir melhor sobre algo realmente importante. Escrever, para mim, mais que um ato de tentar aparecer e conquistar você, leitor, através das minhas voltas em torno de um mesmo ponto, é principalmente um ato introspectivo/reflexivo extremamente saudável. Por isso, e mais para isso, é bom estar de volta.

Pensei em mudar de endereço, recomeçar, e vi que não. Já estou recomeçando coisa demais e o endereço seria só detalhe. Talvez eu peça pra Rosi uma cara nova, a saber.

Como sempre é bom ter uma novidade, encerro contando um segredo. Vez por outra escrevo com música, para melhorar o meu foco [coisas de quem tem desvio de atenção]. Esse texto foi escrito ao som de Regina Spektor. Álbum Begin to hope (2006). Sempre que acontecer de eu escrever com playlist aviso aqui no fim.