terça-feira, 12 de abril de 2011

Conjecturas

Toda criatura humana, seja na escola, na faculdade, numa notícia de jornal ou em algum livro qualquer, pelo menos uma vez na vida vai se deparar com o termo Filosofia. Nem que seja em letra de música, mas vai. A palavra pode passar batida para muita gente, mas acontece para algumas pessoas o estudo das ciências humanas. Aí não tem jeito, a sombra da Filosofia vai estar por lá, reinando perene com Aristóteles, Kant, Descartes e seus amigos.

Ano passado [e, creio, esse ano ainda] foi preciso retomar algum estudo filosófico, coisa que não fazia há dez anos pelo menos. Mas Filosofia a gente não esquece. Ela só fica guardada em algum compartimento empoeirado, no meio dos 90% do cérebro que não usamos, pronta para ganhar um espanador, um pano úmido, um lustra móveis.

Assim, junto da Filosofia, ponto de partida de minhas conjecturas, chegam duas palavrinhas associadas, como quem não quer nada, que marcam a vida da gente igual lastro de rio: felicidade e dignidade.

Seu professor de Filosofia, se você o teve, deve ter contado que a grande missão do pensamento filosófico é a busca da felicidade. Sob diversos aspectos e teorias, quer através de atitudes altruístas, egoístas, utilitaristas, estoicas ou que as valham, os modos de se alcançar a felicidade serão nosso tema de trabalho.

Não vou me dar a árdua tarefa de definir felicidade. Ela não existe, já disse algum nosso colega dos tempos de colégio, talvez nós mesmo. Ou só existem na vida momentos felizes, disse outro colega. Deixemos a definição para os grandes e vivamos o caminho da busca. A busca, essa eterna, que bobear não acaba nem depois de morrermos. Busca que pode, e deve, ser pontuada por momentos de satisfação.

Não creio na dor, opinião pessoal, e penso que ninguém sente dor por opção. Nem mesmo o masoquista. Não compreendo masoquistas, sádicos e prazeres semelhantes. Aceito os sofrimentos impostos pelo "perpétuo vai e vem de elevações e quedas" (Sêneca) da vida. Mas não creio na dor, no martírio, na opção voluntária pelo sofrimento. Seja o mesmo físico, psicológico ou transcendental. Se existe um deus, no qual acredito e me espelho, esse deus não poderia querer a institucionalização do "choro e ranger de dentes" para toda a humanidade, na qual me incluo.

Isso posto, cabe a mim enquanto escrevente dessas conjecturas, elencar um pequeno paradoxo: "se algo traz dor, e pode ser evitado, por que aceitar?". Existe uma diferença grande entre "aceitar as coisas como elas são", princípio filosófico, e "suportar as coisas por medo do desconhecido". Acontece que, em muitas vezes, a última situação é justificada com base na outra.

Tomemos um exemplo pessoal. Se estou falando de perder medos nada mais correto que trazer à baila histórias de vida. Porém, para não perder o ritmo dissertativo, troquemos o pronome pela abreviatura: "M".

M começou a trabalhar em um lugar. M teve medo, na época, de mudar o emprego, mas era boa perspectiva e foi. M gostava do lugar em que agora trabalha. Só que, com o passar do tempo, as coisas mudaram em duas vias. Em paralelo ao aumento da demanda do trabalho de M, que acabou por aprender uma coisa ou duas, vieram pequenas sanções a M e todos os seus colegas.

No lugar em que M [ainda] trabalha, tudo começou a complicar. Detalhes. Sempre eles. Um exemplo: se M precisava ir ao médico, aquele tempo não era computado como ausência. Hoje [porque, afinal, é a lei], M precisa deixar compensado o período. Nada ilegal, repito. Na semana que vem, M vai tirar seu dente de siso, o último. O deslocamento entre o lugar de trabalho e o dentista deve ser previamente compensado, na forma da lei. Mas M não recebe seu controle de ponto há mais de mês...

No lugar em que M [ainda] trabalha, tudo acontece conforme as regras e todos se orgulham disso. O lugar em que M [ainda] trabalha é legalista por definição. Questionamentos se resolvem, repito, na forma da lei. Com isso, no lugar em que M [ainda] trabalha, as pessoas se transformaram. Perderam a parte boa do lado humano para não perder emprego. Todas, ou quase. O próprio M está diferente. Olhando de fora, diriam que M está pacífico. Por dentro, M se sente extremamente passivo. Não participa, acata. E junta muitos papéis. M está cada vez mais cinza, cada vez menos M.

Agora, no lugar em que M [ainda] trabalha, resolveram atacar a única parte que M acha boa [boa mesmo, não uma parte boa pelas metades]: a sua cabeça. Querem que M seja só corpo, querem que M deixe de pensar e se especialize como o apertador de parafusos do Chaplin. "Encaixotando M." Mas M, que sempre aceita, que sempre aceita, que sempre aceita, sabe exato o seu ponto de tolerância. M não nasceu para trabalhar na indústria. E está pensando o que fazer. E está pensando tanto, mas tanto, que resolveu contar sua história de forma, digamos, um tanto quanto pública e passível de arrependimentos.

Voltando à questão da felicidade, o que você faria no lugar de M? Não é que ele esteja infeliz, chorando pelos cantos em agonia. Feliz, porém, M não está. Nesse momento, M vive na temperatura "morno", aquela coisa indefinida que ninguém assume mas tempera o banho de boa parte da população. M está morno, nem frio nem quente.

A resposta ao que fazer vai, necessariamente, passar pela sua paciência em ler um texto gigante como esse e se contextualizar; vai passar também pela sua experiência de vida. Caso você seja casado, com filhos, seu pensamento seria "fica lá até achar outra coisa melhor". Obviamente isso levaria ao continuísmo sedentário, e a espera de outra coisa vem a ser mais ou menos eterna. Se você tem por volta dos 20 anos, diria ao M para "chutar o balde" e foda-se. Mas, aí, como M pagaria as suas [muitas] contas?

M, ou eu, não sabe muito bem o que fazer. Porque até pode não parecer, mas M tem, acima da submissão passiva, o grave defeito de ser teimoso. M é arraigado a seus valores e compra briga quando ofendem seus poucos princípios. Aí entra o ponto da dignidade que citei lá no começo.

Vou pedir um pouco de licença e citar dois trechos curtos da Constituição do Brasil. Juro que não dói: "Art. 1º A República Federativa do Brasil tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana; (...)". Pois é. Os deputados que escreveram a Constituição andaram lendo algum livro de Filosofia. E mais: "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (...)".

No fim do ano passado, lembro bem, tive de fazer para o Enem uma redação sobre trabalho e dignidade da pessoa humana. Totalmente diferente desse texto de agora, mas o sentimento de não-felicidade era semelhante. Comentei com alguns que me vi hipócrita em colocar no papel que os indivíduos deveriam buscar a felicidade no trabalho enquanto eu mesmo não me sentia feliz na condição atual. Mas sublimei. Por medo.

Agora, e resumindo, a questão é outra. É colocar no papel meu medo de passar fome [extremando a situação] versus valores que definem a minha personalidade, a minha hombridade e o meu caráter. É pensar que a vida, mais uma vez, pediu para eu marcar um xis na opção que achar melhor, e sustentá-la. No fundo eu, ou M, sei bem o que fazer. Falta ela, a coragem.