quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Um pouco de história da arte

O ano era 1970, abril. Eu, logicamente, só viria a nascer alguns anos depois. Meus pais, vizinhos que brigavam desde a infância, já se conheciam, bobear até namoravam, não sei. Aqui em Belo Horizonte acontecia uma exposição chamada Objeto e participação, com uma manifestação paralela chamada Do Corpo à Terra. Eram os anos de ferro, o ecologicamente correto ainda não estava em alta, e os artistas mais engajados aproveitavam o contexto social para se manifestar como podiam.

"Objeto e Participação consistiu numa exposição coletiva, realizada no saguão do Palácio das Artes com trabalhos experimentais, abertos à participação do público, de Franz Weissman, Tereza Simões, José Ronaldo Lima, Humberto Costa Barros, Guilherme Vaz, Carlos Vergara, Ione Saldanha, Odila Ferraz, Cláudio Paiva, George Helt, Orlando Castaño, Manoel Serpa, Manfredo Souzanneto, Terezinha Soares, Yvone Etrusco, Nelson Leirner e Marcelo Nistche. Do Corpo à Terra foram propostas conceituais realizadas durante três dias no parque e nas ruas da cidade. Os artistas não apresentaram obras, mas realizaram várias ações: Cildo Meireles queimou galinhas vivas em homenagem ao sacrifício de Tiradentes; Dilton Araújo cercou o Parque Municipal com uma corda; Lotus Lobo plantou sementes; Luis Alphonsus queimou uma faixa de pano de 30 metros; Eduardo Ângelo rasgou vários jornais velhos; Luciano Gusmão fez um mapeamento do Parque, dividindo as áreas livres das áreas de repressão; [Artur] Barrio jogou trouxas de carne e osso no Ribeirão Arrudas; Lee Jaffe executou a proposta de Oiticica, desenhando uma trilha de açúcar na Serra do Curral e eu fiz apropriações fotográficas de vários locais da cidade. Do Corpo à Terra foi a última e mais radical manifestação coletiva da vanguarda brasileira" (Depoimento de Frederico Morais a Marília Andrés Ribeiro no livro Neovanguardas: Belo Horizonte – Anos 60. Belo Horizonte: C/Arte, 1997).

A parte em que o Cildo Meireles queimou galinhas vivas foi grifada por mim. Não sei até que ponto queimar galinha era normal e aceitável na década de 1970, mas lembro o choque que tive quando assisti a Marília falando isso como se fosse a coisa mais natural do mundo. Como se ele estivesse descascando uma cebola. Ó gente, ele queimou galinha mas era arte. E ok, era arte mesmo, havia uma proposta por trás daquilo tudo que tinha muito a ver com o estado da sociedade civil da época. Se lembro bem da aula, apesar do choque que deve ter causado, não tivemos manifestações de populares pulando no fogo para salvar as galinhas da fogueira. Galinhas D'Arc. Quarenta anos depois Cildo é um artista plástico bastante conhecido, só deve queimar galinha no forno de casa, e virou verbete na Enciclopédia Itaú de Artes Visuais. Na onda do politicamente correto, a queima de galinha está disfarçada sob o título da obra (Tiradentes - Totem-monumento ao Preso Político).

Obviamente uma manifestação artístico-política desse nível não tem lugar na sociedade atual. Com internet e globalização na jogada, um pobre coitado costa-riquenho pretendente a artista, Guillermo Habacuc, lá na Nicarágua, caiu na besteira de, em pleno 2007, pegar um cachorro de rua e prender dentro de uma galeria de arte sem água nem comida até o cachorro morrer. O erro do Habacuc (atenção: eu tenho duas cachorras e a minha vontade é sim de pegar o tal artista e deixar preso numa corda até morrer de fome e sede, só que a sociedade já o execrou o suficiente) foi de data e, principalmente, de falta de inteligência. O pateta achou que com pleno PETA e movimentos de defesa dos animais na parada a sua arte (e ok, é arte sim, mas uma arte totalmente fora do contexto mundial atual – e me reservo o direito de não saber nada sobre a situação política nicaraguense quando da instalação) seria aclamada. Caiu no esquecimento e provavelmente a próxima obra "do gênero" que ele fizer vai acabar em paulada na cabeça (dele). Há versões e versões para a história do cão. Pesquisando links para esse texto vi, no G1, que o cachorro teria fugido e só ficou sem alimentação durante o período da instalação. Enfim, o caso do cachorro é apenas elemento ilustrativo para o parágrafo seguinte.

29ª Bienal de São Paulo, 2010. Gil Vicente apresenta a série Inimigos, desenhos nos quais ele se representa matando líderes mundiais, como o Papa, a Rainha da Inglaterra, o presidente Lula, George Bush e por aí vai. Desenho, traço. Nem dá para dizer que é hiper-realismo, as imagens são basicamente grafite sobre papel. Instaladas em um espaço criado para se pensar a arte, para se mostrar arte contemporânea. Não tem galinha queimando, não tem cachorro passando fome. Mas tem, claro, polêmica (também conhecida como o ato de falar mal para que uma coisa besta vire sucesso). Entraram com um recurso no Ministério Público, alegando que a obra faz apologia ao crime e deve ser retirada da Bienal. Será que deve mesmo?

Fazendo uma pequena retrospectiva (recente) da arte cinematográfica, vou elencar dois títulos: Dogville e Bastardos Inglórios. Dois filmes, cada um do seu jeito, que levam o espectador a um processo catártico, em um final coroado com assassinatos brutais embutidos em cenas maravilhosas que me fizeram sair do cinema de alma lavada. Mataram Hitler na ficção. Mataram todos os habitantes de Dogville, bem feito, eles mereciam. Daí me pergunto, deveria o Ministério Público intervir, alegando que os filmes fazem apologia à violência? No cinema nacional, o filme Tropa de Elite encerra com um policial dando um tiro na cara de um bandido rendido. Isso não é crime também? E qual a diferença entre imagem em movimento e grafite sobre papel, alguém me explica? Copiando o blog da Barbara Gancia:

"Que [Flávio] D’Urso [presidente da OAB/SP que entrou com a ação no MP] ache impróprias imagens mostrando o artista pronto para executar figuras públicas como a rainha Elizabeth, FHC e Lula ou diga que a obra incita a violência não significa absolutamente nada, tem efeito prático zero, não vai dar em nada, não traduz o desejo da sociedade, revela apenas a ignorância e a falta de compreensão de uma pessoa que não estudou o suficiente para se manifestar sobre arte."

Eu, brincando de ministro, daria ao proponente a seguinte resposta:

"Prezado senhor, agradecemos o seu pedido. No momento, porém, temos mais o que fazer e não demonstramos interesse em avaliar obra de arte. A competência dessa avaliação cabe à curadoria da exposição, que deve ter lá seus motivos para pendurar os quadros. Reclame com eles se não gostou, faça uma petição na internet, passe uma corrente para os amigos, diga para ninguém entrar ou, como já virou moda no Ibirapuera, pegue uma lata de spray e piche os quadros. Só não reclame depois se for preso. Da nossa parte, cremos que o MP não tem competência para instituir censura de qualquer espécie, e é perda de tempo censurar aquilo que está rodando a torto e a direito na internet exclusivamente por sua causa. Caso haja interesse em ocupar seu tempo ocioso com alguma atividade proveitosa, gentileza entrar em contato com a Maria, a atendente do cafezinho. Temos xícaras e pires a lavar. Sem mais."

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