Férias são efetivamente bom tempo. Mesmo que não façamos nada, o que não é recomendável, a mudança prolongada de rotina ajuda inclusive a renovar a perspectiva do trabalho. A retomar o foco, em outras palavras. Para mim férias e feriados estão associados a viagens. Seja pelo fato de a minha mãe morar a uma distância razoável – com a graça divina –, seja por eu realmente achar necessário pegar a estrada para considerar que estou oficialmente "de folga e longe de tudo".
Esse ano, como dito antes, acabei parando de novo em São Paulo. Para quem me acompanha, vez por outra apareço pelas bandas de lá, preferencialmente a passeio e em dias frios mas ensolarados. Não gosto de São Paulo com chuva. Também não gosto de avião, porém o meu gostar não interfere na mecânica da coisa. Vem acontecendo de eu ver e falar mais com os amigos paulistas que com os mineiros ali da esquina, e São Paulo sempre me é muito prazeroso.
Como em todas as férias, carrego um kit de sobrevivência com livros que não li e dvds que não assisti – tenho horror do Word me sugerir dvd em maiúscula, soa agressivo aos olhos. E, claro, como em todas as férias, não faço metade. Só li um livro. Na verdade estou nas últimas páginas, e vou passar a minha coleção da Mediadora adiante, deixar para ler no fim do ano. Nem gasto metade da mala de roupas, o que é perfeitamente comum.
O livro que li – estou lendo – é O símbolo perdido. Daquele cara que escreveu O Código Da Vinci e ajudou a deixar o Tom Hanks com mais cara de babaca. Entenda: vez por muita preciso da literatura descartável para sobreviver. E, sejamos francos, esse livro é bom. Melhor que o Código, mas não tão bom quanto Anjos e demônios, que tem um frescor magnífico ainda não superado pela experiência do autor. Se o Robert Langdon durar mais uns três episódios – ele tem fôlego, idade e mercado para isso –, talvez o Dan Brown se supere.
Quem mais me interessou no Símbolo perdido foi uma personagem feminina coadjuvante: Trish Dunne. Não quero me aprofundar no livro para não estragar o prazer de quem não leu. Trish me marcou por ter desenvolvido um software para medir a temperatura de uma nação. Copiando do livro:
"(...) O que estou querendo dizer é que ele quantifica o estado emocional do país. (...) – Trish explicou como, usando um campo de dados constituído pelas comunicações do país, era possível avaliar o humor da nação com base na 'densidade de ocorrência' de determinadas palavras-chave e indicadores emocionais no campo de dados. Épocas mais felizes tinham uma linguagem mais feliz, e épocas de estresse uma linguagem mais estressada."
Não sei a dimensão de verdade desse software, perfeitamente plausível na minha cabeça, e, francamente, ideia de gênio assim como os clipes e a fita crepe. O livro discute en passant a questão ética da análise de dados pelo governo, mas a personagem em si é pragmática: o uso que fazem do produto desenvolvido não diz respeito a ela. Santos Dumont, dizem, se matou ao ver o avião ser usado como arma. Trish não morreria por isso.
Retomando o fio das férias, gosto muito de ir a São Paulo mesmo quando não previsto – esse ano pretendia visitar qualquer lugar com praia. Férias me servem enquanto reciclagem, e já pus de lado faz muito a vergonha de pedir aos amigos para me indicarem coisas. Como, por exemplo, músicas novas. Ando bastante reacionário musicalmente, talvez preguiçoso, e não encontro vontade de conhecer novidade. Por isso, também, gosto de visitar os amigos, beber vinho, jogar baralho, falar besteira e escutar um monte de música pela primeira vez. Ano passado fiquei conhecendo a Mariana Aydar. Esse ano fui apresentado a Karina Buhr, Mayra Andrade, Cibelle Cavalli e, especialmente, a Tulipa Ruiz.
Já tinha lido algumas pessoas comentando da Tulipa antes. Só que o nome de flor não me atraiu. Eu gosto de mulheres com nome de flor, mas fiquei naquelas de "ah não vou ouvir disco de mulher com esse nome não". Erro meu.
Entreguei o iPod e disse para meu amigo: "pode tirar tudo, menos a Dolores". Quando fui ouvir pus o conteúdo no shuffle e assim, só assim, ouvi a Tulipa cantar Efêmera, e me encantei pela voz da moça. Disco todo ouvido – aliás, dá para ouvir o disco inteiro aqui –, ficou a sensação de que a moça cantava para mim. Especificamente na música Às vezes, que pareceu a Tulipa literalmente estar me mandando um bilhete.
Quando vou a São Paulo passeio pela Augusta, sempre de óculos escuros, e ignoro o mundo. Blasé sem saber, disse um amigo certa vez. Sem endereço mas com o mesmo telefone, rodo pelas festas e pelos bares do centro da cidade. Tenho ar cansado, banal e normal e, claro, moro em Belo Horizonte. Ouça a música para entender melhor.
Comentei sobre isso com uma amiga, que respondeu: "é a tribo". Ficaram dúvidas: seria minha geração tão comum ao ponto de várias pessoas se identificarem tão profundamente com diversas expressões como se elas tivessem sido produzidas diretamente para o indivíduo e não para a massa? Seríamos nós, a tribo, um metassistema, um cardume, no qual a linha de pensamento é tão compartilhada que acabamos por nos tornar estrutura única – composta por milhões de unidades distintas, mas vista como um grande bloco? E se sim, fazer parte disso seria algo bom ou não?
Fatos: minha geração agrupa a transitoriedade da capacidade de aquisição de informação. Saímos do telefone de ficha para o iPhone, da TV preto e branco para o Youtube – meu grande facilitador de ver novelas. Fomos os primeiros a experimentar a possibilidade de expressão para a globalidade pelo simples fato de estarmos vivos na época em que "fazer um blog" era algo muito novo. Com isso geramos, pelas tentativas e erros, uma grande gama de informação sobre nós mesmos. Os mais inteligentes transformaram as informações e desejos nelas contidos em produto – produtos com identidade, como Reverbcity e congêneres, Ronaldo Fraga e suas roupas ilustradas com personagens Disney, séries da minha infância lançadas em dvd e por aí vai. A geração que era criança na década de 1980, relembro, foi a primeira efetivamente bombardeada pelo furor consumista ainda não regulamentado.
E não precisava um software para desenvolver essa linguagem. A Tulipa, provavelmente, lê muito, circula muito, participa de um grande grupo do qual, mesmo sem querer, faço parte também. Fazemos parte, acho pouco provável que adolescentes apaixonadas pelo mini Fabio Jr. compartilhem gostos comigo. A Tulipa canta bem e eu anseio por um show dela em BH para dar um grande abraço. Mas ouvir Às vezes me deu o grande medo de ser comum demais, ordinário demais, e também de estar fazendo tudo ao contrário, e de ter ficado comum por ter tentado simplesmente ser diferente do resto.
sexta-feira, 30 de julho de 2010
segunda-feira, 26 de julho de 2010
Sete anos
Por vezes me questiono a necessidade ou não de expor em um blog parcelas íntimas demais, pessoais demais. Porém, de certa forma, certos tipos de exposição, mesmo parecendo extremamente cruéis e inúteis acabam se tornando também libertadoras. E, no fundo, o que quero hoje é tratar sobre libertação.
Começo com Federico Garcia Lorca, A Casa de Bernarda Alba:
En ocho años que dure el luto no ha de entrar en esta casa el viento de la calle. Haceros cuenta que hemos tapiado con ladrillos puertas y ventanas. Así pasó en casa de mi padre y en casa de mi abuelo. (...) Y no quiero llantos. La muerte hay que mirarla cara a cara. ¡Silencio! ¡A callar he dicho! ¡Las lágrimas cuando estés sola! ¡Nos hundiremos todas en un mar de luto! (...) ¿Me habéis oído? Silencio, silencio he dicho. ¡Silencio!
Para Bernarda, eram oito anos o tempo do luto decretado. Em minha cabeça, quando comecei a pensar esse texto, teriam sido sete. Tenho até hoje a memória da encenação da peça em uma casa velha, com a matriarca nos expulsando ao final, decretando o fechamento da residência pelos próximos anos. Sete. Como os anões da Branca de Neve, e com todo o simbolismo que o número traz em si. Apesar de o texto me contradizer com relação à duração do luto, penso sete enquanto número simbólico ideal.
Sete anos atrás passei parte de meu aniversário em um cemitério de uma cidade perto de São Paulo. Fosse hoje eu teria saído correndo naquele exato momento, fugindo no primeiro sinal. Mas não era, não poderia ter sido hoje. Há sete anos começava, sem eu saber, um tempo de luto. Por ironia o luto vem a se encerrar comigo, de volta a São Paulo, passando o aniversário na Loja da Galinha Morta. Irônico, diria aquele que controla o ciclo da vida.
Sete anos atrás meu pai era diagnosticado com câncer, vindo a morrer alguns anos depois – não trato desse luto específico por agora. Sete anos atrás eu decidi abandonar um emprego no qual permaneci por exatos sete anos. Seria estupidez de minha parte não assimilar a influência dos ciclos de sete em minha vida. Dizem, inclusive, que o paladar humano muda de sete em sete anos. Razão pela qual eu, talvez, tenha provado uma berinjela e gostado, e comido jiló sem achar ruim.
Voltemos ao luto, senão o texto se estende mais do que devia, fica cansativo e não chega ao final arrebatador no qual eu revelo toda a minha verdade, me liberto e tomo uma decisão definitiva que transforma minha vida. (Por favor, se você espera por isso vá ler Sidney Sheldon e me deixe em paz. Não sou uma obra de ficção – elas têm pontos finais. Estou mais para work in progress.)
O fato é que já se foram sete anos nos quais uma parcela, ainda que pequena, de mim mesmo, ficou fechada para as portas e o vento das ruas. Sete anos em que o medo de caminhar pelo centro de São Paulo passeou lado a lado com o desejo de encontrar alguém, acidentalmente, e perguntar: "por quê"? E ter medo de minha reação. E ter medo do desejo. E ter medo das respostas. E ter medo de saber tudo isso pelo simples, natural e humano medo do desconhecido.
Até que.
Até que enfim vi que não é mais isso. Enfim veio o imenso e necessário vazio, pronto para ser preenchido com cores novas. Foi perdido o temor de caminhar e esbarrar sem querer em quem não devia. Perdi a vontade de caminhar e esbarrar em quem gostaria. Perdeu-se o sentido. Não há mais sentido. No hay banda, já mostrou David Lynch.
¡Quiero irme de aqui, Bernarda! ¡Bernarda, yo quiero um varón para casarme y para tener alegria!
Declaro, portanto, encerrado o tempo do luto. E essa é uma carta de despedida que importa pouco. Poderia ir para um baú e ficar por lá a amarelar, calhou de vir para um blog que não sei quem lê. Declaro visto que não há tristeza, não há alegria, não há nada. Talvez uma sombra, como a cicatriz em minha mão, que vez por outra me faz ter história para contar. E uma ou outra prevenção como as que tomo quando entro em lugares onde sou mal atendido. Se houver encontro, quando houver, se é que já não o houve, será um cruzamento entre desconhecidos. Como aqueles que acontecem todos os dias quando cruzamos por transeuntes que nunca mais veremos.
E a quem me perguntar por que tudo isso é importante para estar escrito aqui respondo: porque foi sim minha vida. Agora abro as portas todas deste quarto, deixo o mundo e o sol entrar.
É hora, de novo, de ser livre.
Começo com Federico Garcia Lorca, A Casa de Bernarda Alba:
En ocho años que dure el luto no ha de entrar en esta casa el viento de la calle. Haceros cuenta que hemos tapiado con ladrillos puertas y ventanas. Así pasó en casa de mi padre y en casa de mi abuelo. (...) Y no quiero llantos. La muerte hay que mirarla cara a cara. ¡Silencio! ¡A callar he dicho! ¡Las lágrimas cuando estés sola! ¡Nos hundiremos todas en un mar de luto! (...) ¿Me habéis oído? Silencio, silencio he dicho. ¡Silencio!
Para Bernarda, eram oito anos o tempo do luto decretado. Em minha cabeça, quando comecei a pensar esse texto, teriam sido sete. Tenho até hoje a memória da encenação da peça em uma casa velha, com a matriarca nos expulsando ao final, decretando o fechamento da residência pelos próximos anos. Sete. Como os anões da Branca de Neve, e com todo o simbolismo que o número traz em si. Apesar de o texto me contradizer com relação à duração do luto, penso sete enquanto número simbólico ideal.
Sete anos atrás passei parte de meu aniversário em um cemitério de uma cidade perto de São Paulo. Fosse hoje eu teria saído correndo naquele exato momento, fugindo no primeiro sinal. Mas não era, não poderia ter sido hoje. Há sete anos começava, sem eu saber, um tempo de luto. Por ironia o luto vem a se encerrar comigo, de volta a São Paulo, passando o aniversário na Loja da Galinha Morta. Irônico, diria aquele que controla o ciclo da vida.
Sete anos atrás meu pai era diagnosticado com câncer, vindo a morrer alguns anos depois – não trato desse luto específico por agora. Sete anos atrás eu decidi abandonar um emprego no qual permaneci por exatos sete anos. Seria estupidez de minha parte não assimilar a influência dos ciclos de sete em minha vida. Dizem, inclusive, que o paladar humano muda de sete em sete anos. Razão pela qual eu, talvez, tenha provado uma berinjela e gostado, e comido jiló sem achar ruim.
Voltemos ao luto, senão o texto se estende mais do que devia, fica cansativo e não chega ao final arrebatador no qual eu revelo toda a minha verdade, me liberto e tomo uma decisão definitiva que transforma minha vida. (Por favor, se você espera por isso vá ler Sidney Sheldon e me deixe em paz. Não sou uma obra de ficção – elas têm pontos finais. Estou mais para work in progress.)
O fato é que já se foram sete anos nos quais uma parcela, ainda que pequena, de mim mesmo, ficou fechada para as portas e o vento das ruas. Sete anos em que o medo de caminhar pelo centro de São Paulo passeou lado a lado com o desejo de encontrar alguém, acidentalmente, e perguntar: "por quê"? E ter medo de minha reação. E ter medo do desejo. E ter medo das respostas. E ter medo de saber tudo isso pelo simples, natural e humano medo do desconhecido.
Até que.
Até que enfim vi que não é mais isso. Enfim veio o imenso e necessário vazio, pronto para ser preenchido com cores novas. Foi perdido o temor de caminhar e esbarrar sem querer em quem não devia. Perdi a vontade de caminhar e esbarrar em quem gostaria. Perdeu-se o sentido. Não há mais sentido. No hay banda, já mostrou David Lynch.
¡Quiero irme de aqui, Bernarda! ¡Bernarda, yo quiero um varón para casarme y para tener alegria!
Declaro, portanto, encerrado o tempo do luto. E essa é uma carta de despedida que importa pouco. Poderia ir para um baú e ficar por lá a amarelar, calhou de vir para um blog que não sei quem lê. Declaro visto que não há tristeza, não há alegria, não há nada. Talvez uma sombra, como a cicatriz em minha mão, que vez por outra me faz ter história para contar. E uma ou outra prevenção como as que tomo quando entro em lugares onde sou mal atendido. Se houver encontro, quando houver, se é que já não o houve, será um cruzamento entre desconhecidos. Como aqueles que acontecem todos os dias quando cruzamos por transeuntes que nunca mais veremos.
E a quem me perguntar por que tudo isso é importante para estar escrito aqui respondo: porque foi sim minha vida. Agora abro as portas todas deste quarto, deixo o mundo e o sol entrar.
É hora, de novo, de ser livre.
quinta-feira, 8 de julho de 2010
Band-Aid
Um dos primeiros desencantamentos que tive foi quando a minha mãe me levou a um programa infantil daqui de Minas Gerais. Viajamos de Ponte Nova a Belo Horizonte para passar as férias e, entre outras coisas, fomos assistir à gravação do programa. Partindo do pressuposto que só fui entender alguma coisa de operação de câmera, roteiro, direção e congêneres na faculdade, o que mais me surpreendeu (e frustrou) na época foi perceber que as pessoas eram sérias.
Porque criança tem disso, todos riem para ela. Até que não riem mais. Existe um momento em que a criança deixa de ser engraçadinha para virar uma chata, e o adulto se cansa. Mas a apresentadora de tevê, a Tia Dulce, ela sempre sorria. Era ligar a televisão no horário e lá estava ela. Sorrindo, simplesmente, coordenando brincadeiras e servindo de babá. Eu adorava a Tia Dulce como todas as crianças do meu tempo. Continuei gostando depois que fui à gravação do programa. Mas, verdade, me decepcionei muito quando vi a Tia Dulce séria, Rapadura e Pituchinha de cara fechada. Como assim ela não está feliz o tempo todo? Por que ela está brigando com aquele moço? Essa não é a Tia Dulce que eu conheço.
Foi em um programa infantil, ou em uma gravação deste, que comecei a perceber que as pessoas não são o que parecem. A Tia Dulce não é toda fofa, a professora não está sempre correta (e já tive brigas horrorosas com professores por conta disso), o amigo "legal" pode ser um "mala". Adiantando um pouco, foi uma frustração memorável — e quem se lembre de algo ocorrido aos cinco, seis anos de idade que não seja "trauma" levante a mão — que desencadeou o meu processo de entendimento de que todas as pessoas vêm com diferentes nuances. Pai e mãe não contam: o filho nasce acostumado às variações de humor domésticas, para ele os pais "são assim" simplesmente.
Parte de minha personalidade é construída na essência por memórias de frustrações: a noite de Natal em que acordei e vi os meus pais colocando os presentes do Papai Noel nos sapatos (não desejem que seus filhos descubram assim que o Papai Noel não existe – chorei dois bons dias); a briga de colégio que não aconteceu porque as serventes da escola seguraram a mim e ao outro no meio da praça (Fabiano, nunca mais vi); a bolada na cara no jogo de futebol infantil que me fez descalçar as chuteiras para todo o sempre; a surra de cinto que tomei porque comprei um pote de gel da marca "New Wave"; o dia em que "esqueceram" do meu aniversário e eu sumi (não aparecendo, consequentemente, na festa surpresa que pensaram em fazer para mim).
Ontem em uma conversa um amigo disse que estava triste. E respondi: faz bem. Você tem todo o direito de ficar triste quando quiser. As pessoas precisam de preto e branco, luz e sombra, claro e escuro. É tão insuportável uma pessoa cem por cento transbordando felicidade quanto o extremo depressivo. Para contrabalançar a alegria da infância é que existem traumas. A perda da avó, com sua mãe gritando e querendo pular no caixão. A saída do pai de casa. O irmão que quebra o braço, a irmã que toma um ponto debaixo do queixo. E a gente sem saber lidar com tudo aquilo.
Até que de repente chega, devagar, o equilíbrio. Para a vida, claro, dar uma balançada na corda e forçar uma meia-volta. Assim seguimos, eu e todos, rodopiando pratos. Porque além de pagar mico, viver é, um clichê para encerrar, cair do cavalo de quando em vez.
Porque criança tem disso, todos riem para ela. Até que não riem mais. Existe um momento em que a criança deixa de ser engraçadinha para virar uma chata, e o adulto se cansa. Mas a apresentadora de tevê, a Tia Dulce, ela sempre sorria. Era ligar a televisão no horário e lá estava ela. Sorrindo, simplesmente, coordenando brincadeiras e servindo de babá. Eu adorava a Tia Dulce como todas as crianças do meu tempo. Continuei gostando depois que fui à gravação do programa. Mas, verdade, me decepcionei muito quando vi a Tia Dulce séria, Rapadura e Pituchinha de cara fechada. Como assim ela não está feliz o tempo todo? Por que ela está brigando com aquele moço? Essa não é a Tia Dulce que eu conheço.
Foi em um programa infantil, ou em uma gravação deste, que comecei a perceber que as pessoas não são o que parecem. A Tia Dulce não é toda fofa, a professora não está sempre correta (e já tive brigas horrorosas com professores por conta disso), o amigo "legal" pode ser um "mala". Adiantando um pouco, foi uma frustração memorável — e quem se lembre de algo ocorrido aos cinco, seis anos de idade que não seja "trauma" levante a mão — que desencadeou o meu processo de entendimento de que todas as pessoas vêm com diferentes nuances. Pai e mãe não contam: o filho nasce acostumado às variações de humor domésticas, para ele os pais "são assim" simplesmente.
Parte de minha personalidade é construída na essência por memórias de frustrações: a noite de Natal em que acordei e vi os meus pais colocando os presentes do Papai Noel nos sapatos (não desejem que seus filhos descubram assim que o Papai Noel não existe – chorei dois bons dias); a briga de colégio que não aconteceu porque as serventes da escola seguraram a mim e ao outro no meio da praça (Fabiano, nunca mais vi); a bolada na cara no jogo de futebol infantil que me fez descalçar as chuteiras para todo o sempre; a surra de cinto que tomei porque comprei um pote de gel da marca "New Wave"; o dia em que "esqueceram" do meu aniversário e eu sumi (não aparecendo, consequentemente, na festa surpresa que pensaram em fazer para mim).
Ontem em uma conversa um amigo disse que estava triste. E respondi: faz bem. Você tem todo o direito de ficar triste quando quiser. As pessoas precisam de preto e branco, luz e sombra, claro e escuro. É tão insuportável uma pessoa cem por cento transbordando felicidade quanto o extremo depressivo. Para contrabalançar a alegria da infância é que existem traumas. A perda da avó, com sua mãe gritando e querendo pular no caixão. A saída do pai de casa. O irmão que quebra o braço, a irmã que toma um ponto debaixo do queixo. E a gente sem saber lidar com tudo aquilo.
Até que de repente chega, devagar, o equilíbrio. Para a vida, claro, dar uma balançada na corda e forçar uma meia-volta. Assim seguimos, eu e todos, rodopiando pratos. Porque além de pagar mico, viver é, um clichê para encerrar, cair do cavalo de quando em vez.
segunda-feira, 5 de julho de 2010
Os desconhecidos
Penso, e às vezes faço qualquer reflexão sobre pessoas que eu deveria conhecer. Os conhecidos e amigos de amigos dos amigos que todos dizem combinar com você, e que, por (des)coincidências, nunca apareceram na sua frente. E seja por alguma parecença de linha de pensamento, semelhança física ou ainda por cisma de alguém, nasce uma interessante lista de ilustres desconhecidos que deixam a sua vida, aparentemente, "por completar".
Oficialmente parei de me preocupar com esses ditos quando pedi um certo alguém (que não me lê) de presente, e veio. Todos os gurus da autoajuda dizem para termos cuidado com o que pedimos. É verdade, tenha medo, muito medo, daquilo que pede. Pode acontecer e ser um problema maior.
Porém, como bom curioso, sei que existem por aí pelo menos três ou quatro sujeitos que são "a minha cara", outros que têm "um papo muito legal", que "você tem de sentar num bar pra tomar uma cerveja junto" e "vocês super combinam"... O de sempre, quem nunca ouviu?
Certa vez uma dessas pessoas de minha lista (que também não me lê) veio conversar. On-line, moramos em cidades diferentes. Provavelmente também eu estava na lista do lado de lá. Três minutos e acabou o assunto e ficou aquele silêncio de quem não sabe mais o que digitar para engatar o gancho de continuar conversa. Serviu, sim: para eu perder medo e preconceito e parar de achar que a criatura era por demais ensimesmada. Mas foi assim, por uma ação do outro lado, que realizei (de novo) que o tudo-a-ver dos outros não tem a ver com o meu. Ou talvez que o meu tudo-a-ver tenha de partir de mim antes de tudo.
Não que eu não acredite mais em amizades que poderiam vir a acontecer. Ou em afinidades. Penso que deixei de crer nos arranjamentos, sob qualquer aspecto. Não creio mais em amores ideais, em amigos ideais, no trabalho idealizado. Não acredito nem professo o cotidiano ideal, e me abstenho totalmente do conceito de se ser comum. Sempre serei do avesso e já fui trabalhar de pijama. O que não me faz nem mais nem menos medíocre.
Ao mesmo tempo tenho noção de que também sei ser pessoa difícil, principalmente no começo. Parte grande dos amigos me tomaram por antipático à primeira vista. Depois, com o tempo, amoleço. Parte da falta de empatia é com certeza responsabilidade minha.
Oficialmente parei de me preocupar com esses ditos quando pedi um certo alguém (que não me lê) de presente, e veio. Todos os gurus da autoajuda dizem para termos cuidado com o que pedimos. É verdade, tenha medo, muito medo, daquilo que pede. Pode acontecer e ser um problema maior.
Porém, como bom curioso, sei que existem por aí pelo menos três ou quatro sujeitos que são "a minha cara", outros que têm "um papo muito legal", que "você tem de sentar num bar pra tomar uma cerveja junto" e "vocês super combinam"... O de sempre, quem nunca ouviu?
Certa vez uma dessas pessoas de minha lista (que também não me lê) veio conversar. On-line, moramos em cidades diferentes. Provavelmente também eu estava na lista do lado de lá. Três minutos e acabou o assunto e ficou aquele silêncio de quem não sabe mais o que digitar para engatar o gancho de continuar conversa. Serviu, sim: para eu perder medo e preconceito e parar de achar que a criatura era por demais ensimesmada. Mas foi assim, por uma ação do outro lado, que realizei (de novo) que o tudo-a-ver dos outros não tem a ver com o meu. Ou talvez que o meu tudo-a-ver tenha de partir de mim antes de tudo.
Não que eu não acredite mais em amizades que poderiam vir a acontecer. Ou em afinidades. Penso que deixei de crer nos arranjamentos, sob qualquer aspecto. Não creio mais em amores ideais, em amigos ideais, no trabalho idealizado. Não acredito nem professo o cotidiano ideal, e me abstenho totalmente do conceito de se ser comum. Sempre serei do avesso e já fui trabalhar de pijama. O que não me faz nem mais nem menos medíocre.
Ao mesmo tempo tenho noção de que também sei ser pessoa difícil, principalmente no começo. Parte grande dos amigos me tomaram por antipático à primeira vista. Depois, com o tempo, amoleço. Parte da falta de empatia é com certeza responsabilidade minha.
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