Em algum lugar li, talvez tenha ouvido, que só se vive até a hora do parto. A partir do momento em que nascemos passamos a morrer pouco a pouco. Não deixa de ser verdade. A figura da morte costura nossos rastros e, independente do quão enviesado seja o caminho, chega-se a ela inevitavelmente.
Plagiando o compositor, não tenho medo da morte. Mas sim medo de morrer. Talvez pela dor, se é que dói, ou pela certeza do definitivo. Se me for dada opção de escolha quero morrer louco, sem nem saber qual o meu nome, falando um monte de palavrão em um corredor de hospital, enrolado numa imensa colcha de piquê.
O título acima diz das pequenas mortes. Até agora só falei da morte grande, a final, e não é esse meu propósito. O texto deveria ter começado pela seguinte epígrafe, um escrito para o twitter que não publiquei por achar depressivo:
"Há 21 anos minha avó morreu do coração. Perguntei se as pessoas não podiam ficar mais antes de ir. Daí descobri que existe o câncer."
Fato: tenho vindo de uma sequência de mortes, efeito dominó. Por ser de família grande, pessoas mais velhas, algumas delas adoecidas num mesmo tempo; mas não por susto, esse ano não aconteceu acidente nenhum. Eram mortes previsíveis, nem por isso menos doídas. Perdi meu padrinho, por coincidência meu avô, figura semelhante por demais a mim. Mais que o meu próprio pai. Por isso a dificuldade em deixar passar. Não saí ileso, porém até hoje não chorei. Então não quero falar sobre isso enquanto não chorar de verdade.
Quero, sim, falar das pequenas mortes. Morre-se a todo dia, desde o ato de se lavar. Saem células mortas, já ocupadas pelas mais novas e vivas. Fios de cabelo presos na escova, no pente. Bactérias na escova de dentes, nossas partes. Morre-se ao fumar, também ao caminhar, pela simples ação do vento. Vamos morrendo para nós mesmos todos os dias.
Ao mesmo tempo morremos para os outros. Aqueles que se vão, passageiros como nós os somos. Aquele que dorme e não sabe se acorda. Aquele que se matou no exato momento em que escrevo, levando consigo todo um seu mundo do qual não mais faço parte. Ao morrer o nosso universo conhecido se acaba, e com ele todo o resto. Da menor importância, um fim de mundo a cada corpo que expira.
Morremos e matamos a quem nos quer bem. Uma palavra ríspida é ato de morte tão cruel quanto um sorriso. Não se engane, sorrisos são cruéis, fatais, amorais. Principalmente os não espontâneos, os que mascaram o sentimento real e são usados cotidianamente em casa, no escritório, na cozinha e no banheiro. O sexo, gerador de vida, é, por definição, uma chacina. Quantas células morrem para que apenas uma tenha sucesso...
Vivemos cercados, sitiados, pelas pequenas mortes. Ainda assim vivos. Cientes do que nos aguarda e, meu caso, com pressa nenhuma de chegar lá. Sem paranoias, um certo medo. Talvez o bom no viver seja justo isso: a ciência de que um dia vamos embora, não se sabendo exatamente quando. É improvável, teoricamente sim é possível, que um piano desabe na minha cabeça amanhã ao sair de casa. Mas quem garante?
As pequenas mortes, nossas, dos outros, da folha que cai da árvore, mandam dizer que estamos vivos sem saber quanto tempo resta. Mandam dizer que o nosso universo é perecível, sim, e por isso deve ser utilizado. Mas sem urgência. Deixemos urgências e emergências para o plantão médico.
... Assim encerro os meus "das". Se você, leitor, obedeceu ao guia que deixei no texto da interpretação, volte e releia todas as metáforas. Se, por outro lado, passeou buscando entrelinhas – e as encontrou – tente reler tudo de forma simples e direta. Porque, no fim, importa não o sentido que imponho aqui, e sim o quanto dele chega em seus olhos.
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Um comentário:
Cara, q bacana! Li sua trilogia "das", pra começar, e gostei bastante.
Há tempos eu vinha pensando nessa teoria de que "cada dia a mais é um a menos"... hehe
E o melhor é mesmo tentar aproveitar cada dia a menos sem nenhuma urgência. Mas com juízo... :p
Depois eu volto, e tento ler tudo com calma, mas, de primeira, queria te parabenizar. Gostei muito do seu blog.
Abço ^^
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