quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Pelos ares

Minha última viagem, agora no carnaval, foi útil para diversas coisas. Em primeiro lugar, como sempre, para ajudar a perder o medo de avião. São Pedro resolveu cooperar, e providenciou céus de brigadeiro tanto na ida quanto na volta. O voo só não foi mais tranquilo por falta de tempo. De Belo Horizonte ao Rio de Janeiro são, em uma aeronave Tam A320, 45 minutos no ar. Daí que não dá nem para comer a comidinha direito. Mal o comissário de bordo chegou no meio da fileira o comandante avisa que estamos em processo de descida. Uma coisa que notei, agora que voltei a voar, é que o piloto parou de avisar que estamos em velocidade de cruzeiro, a nove mil pés, com a temperatura de 26 graus negativos. Muita gente deve ter reclamado.

Também reparei que preciso urgente trocar as minhas malas. Não que eu não goste delas, pelo contrário. Sempre viajei com bagagens peculiares: uma bolsa amarela e uma mala vermelha de rodinhas. Dessa vez, como ficaria apenas para o carnaval, levei "só" 14 quilos de bagagem, apenas a mala vermelha. Não usei nem metade, o que é perfeitamente compreensível. Mas eu preciso trocar de malas pelo simples motivo de que o mundo todo resolveu copiar a ideia. Antes, quando desembarcava, vinham aquela fileira de malas pretas ou azul-marinho, uma ou outra marrom, e as minhas bolsinhas coloridas lá na esteira. Quando desci no Rio vi que a coisa mudou, o carnaval tinha começado já no desembarque. Nunca tinha visto tanta mala vermelha, laranja, e até mesmo uma lilás com estampa branca. Todas com fitinhas coloridas "para não misturar". Daí que vou na contramão e quero uma mala preta quadrada. Para não perder.

Finalmente, vi o quanto o ser humano, seja ele rico ou pobre, é agarrado a suas posses. Tirando liquidação de loja, esteira de bagagem em aeroporto está concorrendo a top falta de educação no mundinho contemporâneo. O princípio de entrega das bagagens é simples e óbvio: uma esteira onde a sua mala é posta e fica dando volta até ser resgatada. Ou seja, se ela desfilou na esteira a primeira vez e entrou de volta na portinha, ela retorna tal como foi colocada. Sabiam? Pois meus colegas de voo não tinham noção disso. Quem olhasse de fora iria dizer que estavam dando comida a flagelados da seca. A bolsa despontava lá na entrada e era um furor uterino para resgatar a mala como se a sobrevivência da pessoa dependesse exclusivamente daquilo. E dá-lhe empurrão, carrinho em cima do vizinho, e eu juro que ouvi um grito. Se antes eu dizia que só se conhece de verdade uma pessoa no fórum, agora acho que dá para ter uma breve noção também na hora de pegar as malas de viagem.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Boundaries

Em um episódio de Grey's Anatomy é mostrado o corredor de entrada para o bloco cirúrgico, em destaque uma linha vermelha no chão. A linha indica até onde o acompanhante do paciente pode ir: após aquele risco apenas médicos, enfermeiras e, claro, a vítima da vez. O capítulo em si trata de tema recorrente – para não dizer clichê – da dramaturgia norte-americana: to cross the line.

Foi depois desse episódio que passei a reparar mais no quanto a expressão – "cruzar a linha" em português tupiniquim – é utilizada pela galera da gringoland nas suas séries. Quando alguém "faz arte" (expressão que tenho adorado por agora e que deviam ressuscitar), bebe além da conta, enfia o pé na jaca, enche o saco, tira foto sem roupa dependurado no poste, tudo em geral, lá vem aquela personagem completamente histérica dizer you crossed the line, you crossed the line!, quase caricaturalmente (nesse momento você pode imaginar a Bree, ou a Meredith, dizendo isso), em alguma cena lição de moral que dá vontade de desligar a tevê e ler Ulisses.

Assisto a muitos enlatados, alguns por vezes dão nos nervos. Veja o péssimo hábito de as pessoas temerem a expressão I love you, quase como se fosse uma condenação irrevogável à morte, ao degredo ou, pior, ao casamento inevitável (prisão perpétua?). Mas compreendo. Em uma sociedade sensível ao toque, que se surpreende com a capacidade brasileira de abraços e beijos, nada mais normal que o termo "amor" ser elevado à sexta potência e ao status de definitivo. Agora, no entanto, não quero focar no amor americano. Qualquer dia isso volta a ser tema.

Hoje quero pensar o clichê de se cruzar a linha, passar os limites. Não pela convenção social. Todo mundo acima dos 25 anos, sorry teens, sabe que não é legal beber e dar vexame sempre, tocar a campainha e correr, passar trote no telefone para o 190, telefonar para a melhor amiga às três da manhã. O que não quer dizer que ninguém nunca tenha feito nada disso. Pagar mico é parte dos rituais de passagem brasileiros. Faz bem para a personalidade e para o caráter, principalmente quando dá errado. Ninguém esquece o porre de vodka na sétima série, a vizinha com o rolo de pastel na mão, a viatura na porta de casa "minha senhora, estão passando trote desse número", muito menos a amiga dizer "agora não, estou no motel".

Existem outros limites, ditos invasivos. Acredito que ninguém duvide, até porque se esses não existissem todo mundo iria ao banheiro de porta aberta. Vamos além. Na atual crise de invasão de privacidade já vi artista trocar de roupa na praia (como qualquer mortal) e lá vir a câmera apontada para lugar estratégico, programa de tevê montar guarda em porta de famoso, tudo que venda o escândalo do dia. E famoso que vive disso, não sejamos hipócritas. Por minha vez, penso preservar um elegante anonimato escrevendo para poucos e não me imagino agente/passível desse tipo de escândalo. Isso está fora de minha fronteira. Só uma vez, anos atrás, fui reconhecido por um rapaz que acabou virando amigo. Nada além.

E existem, por fim, os piores limites, os individuais. Tênues linhas, completamente variáveis e subjetivas, fluindo e se moldando como água em potes diferentes. Hoje estou assim, não me encostem. Por que você não vem cá e me abraça? Agora não, preciso de espaço, você está me sufocando. Mas é claro que vou dormir aí. Eu, pendurar a roupa? Tenho pavor de pia suja, por isso é que estou lavando. Morro de preguiça de passar uma camisa que seja.

A quem leu e entendeu, obrigado por me suportar.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Na Sapucaí

Diga espelho meu se há na avenida alguém mais feliz que eu. A União da Ilha voltou ao grupo especial das escolas de samba, e abriu o desfile cantando o samba-enredo "É hoje" como aquecimento. A avenida Sapucaí toda cantou junto, eu inclusive. Foi a minha primeira vez na passarela do samba aqui no Rio de Janeiro. Vim para o carnaval, volto para Minas nessa quarta-feira de cinzas. Fui assistir a uma das noites dos desfiles, ingressos comprados na sorte, por telefone, dentro da cota dos 20% de bilhetes separados para moradores de outros estados. A cota dos cariocas se esgotou em 30 minutos na época. Mais rápido que show artista pop. Eu não entendia o porquê.

Explicar desfile de escola de samba é algo inútil. Acho que a melhor definição seria o que um colega de arquibancada disse: "isso aqui é um Maracanã mais organizado!" Nunca fui em uma partida no Maracanã, mas deve ser isso mesmo. Uma multidão aglomerada para o maior show da terra, do qual ela é, além espectador, parte fundamental. Porque o desfile, que é (ou deveria ser) feito para o público, só vai funcionar se o público responder. Pode ter o melhor samba, e as fantasias mais bonitas que, se o público não abraça a causa da escola naquele momento e se a arquibancada não pulsa junto, o desfile soa frio e distante. Deve ter sido triste para a Beija-Flor, por exemplo, ver o sambódromo se esvaziando com a passagem da escola. Torcedores partindo antes do fim do jogo.

Assistir às escolas de samba desfilar é algo que todo mundo deveria fazer uma vez na vida, pelo menos. Preferencialmente antes da terceira idade, e fora do dia das campeãs. Claro que dá para ver da tevê, mas a televisão faz algo muito ruim para o espetáculo: retira das escolas a grande democracia que a gente sentada ali assistindo, percebe. Não sou capaz de dizer que tal artista estava ali, e não fosse o Samuel do meu lado me chamando a atenção – "olha o Zico", "ali é o Eri Johnson com a presidente do Salgueiro", "aquela é a Viviane Araújo" –, eu não ia ser capaz de falar sobre nenhuma celebridade. O que é maravilhoso. Ver aquele mundo de gente defendendo a camisa de sua escola, cada um consciente de sua importância, ver cada um se sentindo fundamental naqueles 20 e poucos minutos na avenida, brigando pela sua bandeira, é encantador. E ter a consciência de seu papel enquanto espectador é glorioso. O carnaval democratiza a alegria e isso, e só por isso, já é muito bom.

Também existe ainda, no meu caso, a realização de uma vontade pessoal. Quando a Ilha começou a cantar o refrão lá de cima os meus olhos se encheram de água e eu me senti parte de algo grandioso. Chorei umas duas ou três vezes de alegria. Se deus quiser e quando eu puder farei de novo. Preferencialmente trazendo mãe, irmã, gato, cachorro e papagaio comigo. Aumentando o congestionamento das linhas telefônicas da liga das escolas de samba. Vale a pena. Vale muito a pena. Experimente.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Sobre o medo

Quando perguntado de que tenho medo, quase sempre dou a mesma resposta: rato, avião e panela de pressão. Tenho medo de rato, vivo ou morto. Desde as ratazanas de jardim da minha infância, enormes, mostrando os dentes e ameaçando avançar, até os ratos mortos nas rua de agora. Invariavelmente atravesso a rua se tem um rato no caminho, tanto faz se vivo ou morto. É instintivo. Já tive medo de lagartixas, até ver o quanto elas são úteis no combate a pernilongos e mosquitos em geral. Baratas sempre resolvi na base da chinela. Rato é outro departamento.

Todo mundo tem uma história de uma panela de pressão que explodiu. Quase todo mundo; a experiência de desastre com panela de pressão mais próxima que tive aconteceu em uma festa de casamento, e não vi nada. Somente soube do acidente quando dei fé que as comidas nunca mais chegavam. E por quê o medo de algo que nunca vi de perto? Oras, justo por isso! Medo do desconhecido, do que nunca vi. E do que virá. A cada dia que passa, a panela de pressão se torna uma arma mais poderosa; ela é capaz de coisas terríveis. Por isso fujo, evito sempre que dá.

Finalmente os aviões. Avião é inevitável hoje em dia, e venho tentando treinar os voos curtos, até internaliar o quanto eles são práticos e encarar uma viagem longa. Provavelmente nessa encarnação eu não conseguirei relaxar dentro de um avião, mas aceitar a ideia de que aquilo economiza tempo me deixa mais conformado. Para mim, bípede, voar é algo não natural. Posso ter a cabeça nas nuvens, mas um pezinho em solo firme não faz mal. Sei que tem quem ame e quem considere esse medo algo caipira e irracional. Mas eu nasci caipira. E o que é o medo, senão uma descarga irracional e pouco controlada de sentimentos frente a algo supostamente ameaçador?

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Por que não estudo russo

No filme Bonecas Russas, uma das cenas que mais me marcaram acontece nas ruas de São Petersburgo. É praticamente um trecho documental, onde a cidade é vista: com suas placas de sinalização, propagandas, estação de trem. Uma cidade como outra qualquer, só que com todas as coisas escritas, como era de se esperar, em russo. Essa cena me remete à frase que ouvi de uma amiga: "estar sozinho em um lugar desconhecido, no qual ninguém sabe quem é você, é algo extremamente libertador". E, confesso, tenho muita vontade de me perder em um lugar desses, no qual se entende apenas o sinal de trânsito, aquele que vem na linguagem universal das cores. Pare, siga, atenção.

(In)felizmente, desde criança me vejo impedido de ligar para alguém caso estiver perdido na esquina de Walk com Don't walk, em Nova Iorque. O máximo que vou ouvir em resposta é um palavrão. Por opção, não passo mais fome em Paris, já sei pedir uma baguette na boulangerie. Por semelhanças gráficas, devo conseguir me safar convenientemente bem tanto em Madrid quanto em Berlim, apesar de não entender uma palavra nem de espanhol ou de alemão. Em Tóquio, pelo que imagino, tudo deve vir com legenda em inglês. Dos trechos conhecidos para a minha utópica imersão cultural (porque sempre terei a opção Papua Nova Guiné, ou qualquer outro destino exótico em que línguas milenares passam de pai para filho, como o Alto Xingu) sobram a China, o Oriente Médico, a Grécia e, logicamente, a Rússia.

Eu não me aventuraria no Oriente Médio por, juro, amor à vida. À minha vida, claro. Obviamente a Faixa de Gaza não deve ser só o que é mostrado na televisão, deve haver algum tipo de vida humana por lá, e os bebês provavelmente não nascem com o corpo coberto de bombas. Apesar de, convenhamos, o fato de uma cidade se chamar Cabul, praticamente a onomatopeia universal para o som de uma explosão, já soar assustador. É, para mim, uma vivência com baixa prioridade. Dubai não é meu roteiro dos sonhos de novo-rico wannabe. Assim como dispenso os passeios de bugre "com emoção" nas dunas do Nordeste (perdi um primo em um acidente "emocionante"), também dispenso a possibilidade de estar em um lugar em que se come carne de cachorro. Ou, como diz o ditado chinês, onde come-se tudo que tem quatro pernas e não é mesa, tudo que voa e não é avião e tudo que se move na água e não é navio. Se posso dispensar ser alvo de mísseis, declino tranquilamente da possibilidade de ter de experimentar olho de peixe, escorpião, bicho-da-seda, gafanhotos e, claro, cachorro.

Sobram então a Grécia, que me parece mais um roteiro para se fazer sem pressa, de forma agradável e, paradoxalmente, entendendo tudo – entendendo que cada pedrinha ali tem a sua contribuição na formação do nosso pensamento contemporâneo –, e a Rússia. Ou seja, só sobrou a Rússia para me perder (fora aquele país que você pensou, caro leitor, onde falam aquela língua estranhíssima que você vai dizer na caixa de comentários só para mostrar o quanto é inteligente). Um lugar com um alfabeto completamente diferente do meu, impossível de se decifrar sem algum estudo prévio. E ao mesmo tempo urbano. Penso que um dia em uma cidade grande da Rússia (Moscou também deve ter placas com legenda, vamos nos ater a São Petersburgo mesmo) deve ser exatamente como um dia em qualquer cidade do mundo, porém com todas as placas dizendo coisa alguma. Uma vivência possível e tangível de surrealismo. Um sonho acordado.

Ou, ainda, um reencontro com o analfabetismo. Quantas vezes você já se pegou pensando "... e se eu não soubesse tal coisa?"; "... e se eu simplesmente não soubesse para onde ir, o que faria?". São Petersburgo está aí para esclarecer a todas essas dúvidas. Para permitir a vivência da ignorância em estado bruto. Basta um avião para Moscou, e algum tempo de trem. Talvez depois você e eu queiramos estudar russo. Dizem que é fácil, parece ser mesmo. Só que aprender russo, agora, para mim, é fechar de vez a porta mais provável para uma viagem idealizada. É matar um sonho possível. É entender que aquela placa significa "vire à direita", e não "seja feliz aqui". Por isso, e só por isso, não estudo russo. Não pra já.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Bullying

Fui alfabetizado por uma babá. Digo, não exatamente alfabetizado, porque o processo de alfabetização envolve mais processos do que aprender a ler. Então, melhor seria anotar que a minha babá me ensinou a ler quando eu tinha três anos e meio. Talvez seja normal hoje, porém, se voltamos 30 anos no tempo, as crianças de três anos e meio em 1980 não viviam exatamente ocupadas com cartilhas. Havia coisas muito mais interessantes para se fazer. Como colocar blocos quadrados em caixas, por exemplo, e desenhar. Eu, por outro lado, ficava vendo figuras de letras e repetindo as palavrinhas. Aquela coisa de abacaxi, escola, igreja, ovo e uva.

Minha mãe, em um acesso de sobriedade e de bom senso (juro que estou falando sério, sou imensamente grato a ela por ter tentado me dar um mínimo de normalidade), achou por bem que eu tivesse educação formal continuada igual a todos os alunos. À exceção de que me mandaram para o colégio um ano mais cedo. Sou nascido em julho e, portanto, conforme as regras escolares que já vigiam à época e valem até hoje, só deveria ter começado a frequentar escola um ano depois de quando fui efetivamente matriculado. O que resultou, claro, em ser sempre o primeiro da fila "por ordem de tamanho", sistematicamente condenado a sentar nas cadeiras da frente. Não só pela altura, até porque nunca fui alto, como também pela miopia.

Agora imagine um menino que já sabe ler dentro de uma classe de alfabetização. Menor que os outros, sentado na carteira da frente, óculos de fundo de garrafa com um dos olhos tapado (para melhorar a visão do olho fraco, disse algum oftalmologista), respondendo às perguntas unicamente porque já sabia todas as respostas e completamente intolerante com a estupidez de quem (como assim?) não sabia que aquilo era uma letra A. Insuportável desde criança. Caxias desde os quatro anos.

Obviamente meu relacionamento com os colegas não podia dar em algo que preste. Vejamos algumas pequenas consequências da alfabetização precoce. Já colaram um rabo de papel em mim, salvo engano mais de uma vez, e já desfilei pelo colégio todo com o bendito rabo. Sempre era o último escolhido para o time de futebol na educação física. Não que me importasse, as aulas de educação física eram sessões de tortura mesmo. Em compensação, todos queriam ser do meu grupo de trabalho. Até porque eu fazia sempre o trabalho todo, ou pelo menos boa parte. Baixinho, gordinho, caxias e chato, obviamente colecionei, nos tempos de colégio, mais apelidos que genitália feminina. Baleia, bolinha, quatro-olhos, pintor de rodapé, toquinho de amarrar jegue, cabeção, capacete (por conta de um corte de cabelo horroroso que fizeram em mim) e mais outros que, realmente, não lembro.

Dois episódios específicos me marcam até agora. O primeiro por inocência da minha mãe, que achou por bem colocar meu nome em todo material escolar que eu tinha, mochila inclusive, quando me mudei para estudar em BH. Eu era o único aluno do colégio a ter uma mochila com o nome pintado. Perfeitamente plausível em se tratando de minha mãe, inconcebível para um adolescente de 14 anos recém-chegado do interior. Foi a primeira vez em que bati o pé para ter uma mochila nova, "da Company", que era o que todo mundo usava na época.

A outra lembrança vem um tanto quanto piorada. Meu professor de educação física, em um acesso de tentar que eu fizesse algo na aula, disse que eu podia fazer natação no horário. Agradeci, nadar é algo que sempre fiz muito bem, e toda aula ia nadar, mesmo com frio. Até o dia em que um colega, durante o intervalo (ou "recreio"), abriu minha mochila e pendurou minha cueca no basculante da sala. Foi o bastante para, uma semana depois, eu chegar com um atestado médico de um primo, me dispensando das aulas de educação física até o fim do ano. Nunca mais nadei naquele colégio depois disso.

Como tudo passa, com a faculdade veio uma certa mudança de comportamento e temperamento. Amadureci, encontrei amigos (sobreviventes dos tempos de colégio foram poucos, não enchem uma mão), deixei de ser o melhor da turma graças a deus, e passei a ser apenas eu mesmo em busca de identidade, o que já é complicado. Os traumas de escola ficam para esse texto e para um pequeno prazer pessoal. Hoje eu trabalho no prédio ao lado de onde aquele colega que pendurou a minha cueca tem um escritório. Vez por outra o vejo na rua. Careca, barrigudo, velho. Até hoje viro a cara quando passo perto. Sem dar nem bom dia.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A cada tempo

Quero pedir a licença de você, caro leitor, para uma breve citação. Ela resume um pouco de minha proposta para esse novo amontoado de escritos.

"Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo para nascer, e tempo para morrer; tempo para plantar, e tempo para arrancar o que foi plantado; tempo para matar, e tempo para sarar; tempo para demolir, e tempo para construir; tempo para chorar, e tempo para rir; tempo para gemer, e tempo para dançar; tempo para atirar pedras, e tempo para ajuntá-las; tempo para dar abraços, e tempo para apartar-se. Tempo para procurar, e tempo para perder; tempo para guardar, e tempo para jogar fora; tempo para rasgar, e tempo para costurar; tempo para calar, e tempo para falar; tempo para amar, e tempo para odiar; tempo para a guerra, e tempo para a paz." (Ecl., 3:1-8)

Esse texto da Bíblia pode ser encontrado em diferentes versões, porém sempre falando sobre o tempo das coisas. O que muda são alguns termos, muito em função do politicamente incorreto "atirar pedras" que o Eclesiastes fala. Nos dias de hoje a prática de atirar pedras não é muito recomendada, e na verdade não deveria ter sido nem nos tempos que escreveram a bíblia. Porque deve doer, e muito, levar pedrada.

Tentando não me desviar do assunto, estou em minha cidade: Ponte Nova. Para quem ainda não sabe, ou seja, para você que nunca leu nada meu antes desse blog, é onde nasci, onde mora a minha mãe e parte da minha família. Volto a Belo Horizonte hoje ainda. Vim para um funeral. Há quatro meses um tio meu entrou em um hospital e por lá ficou até ontem. Era algo esperado, só que o susto de um telefonema de morte, esperada ou não, é algo que sempre tira a gente do chão. Em menos de uma hora meti-me dentro de um ônibus, e cá estou. Quebrado de cansaço o suficiente para faltar o trabalho justo quando não deveria. Era esse o tempo de que eu precisava, infelizmente.

Amanhã volto à rotina que será interrompida pelo carnaval. Com a sensação estranha de que a semana será tudo, menos típica.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

A cozinha e o tempo

Entre meus herdados está o caderno de culinária que foi de minha bisavó. Muito provavelmente devo ter escrito algo sobre esse caderno em outro lugar, usando a seguinte descrição: velho, páginas amarelas, capa marrom e receitas incompreensíveis. Praticamente um livro de bruxaria familiar. Nunca fiz nem vou fazer metade das receitas de lá, mas sei exatamente como preparar praticamente todas elas. Até mesmo a que se resume em uma lista de três ingredientes, nada mais. Minha bisavó não escrevia o modo de fazer as receitas. Seria óbvio demais. Qualquer dia publico alguma receita que funcione por aqui, hoje não.

Hoje importa, mais que o velho caderno de receitas, uma reflexão sobre o tempo de preparo dos alimentos. Considero de essencial importância que todo mundo, pelo menos uma vez, experimente algo na cozinha. Ferver o leite, que seja, ou cozinhar um ovo. Algo simples. Com o único objetivo de perceber que tudo demora um tempo específico para chegar ao ponto correto. Se uma peça de carne fica por pouco tempo no forno vai chegar crua à mesa. E vai queimar se ficou tempo demais. Parece claro e simples, e é.

O difícil, por vezes, é transcender o conceito simplista da bancada de cozinha e entender que o tempo de preparo vai para além dos alimentos. Que a espera deixa a fruta mais madura e com mais polpa. Que o tempo, em si, é extremamente necessário: para assar carnes, amadurecer laranjas, curar feridas e estiar enchentes. Mas que a espera em demasia deixa a carne ressecada, a laranja passada, a ferida apodrecida e as lagoas secas. Saber o tempo exato das coisas é um dom. Que pode ser apreendido na beira do fogão.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Filas e faixas

Na fila do restaurante, um homem espera a namorada ou colega de trabalho pagar a conta do almoço dos dois. Enquanto isso ele confere e manda mensagens no celular. A cena causa algum estranhamento? A mim causou. Não pelo fato de a moça estar pagando a conta do companheiro. Já passamos da época em que isso faz diferença. E sim pelo rapaz em pé, no meio da fila, sem tomar conhecimento do resto do mundo. Veio minha vez de pagar a conta e um sujeito maior que eu barrando o caminho, cheio de gente atrás.

Isso é exemplo típico do que passei a chamar de autismo social, ou excesso de individualismo. Pessoas que simplesmente pararam de se importar com a convivência em sociedade, e desfilam seus micro-universos independentes pelo planeta Terra. Não tenho interesse em qualquer dissertação sobre o tema, para isso existe a faculdade que nunca vou terminar. Porém, ou a minha rabugice aumentou ou está cada vez maior o número de pessoas mal-educadas soltas pela cidade. Ou os dois.

Quando se pensa em "falta de educação" a associação mais comum, para muita gente que mora aqui em BH, é "trânsito". Fizeram até matéria no jornal local sobre isso. Qualquer um tem uma história para contar, dos já manjados motoboys arrancando quando atravessamos a rua na faixa de pedestres até casos como a vez em que eu e uma amiga grávida quase fomos atropelados por uma mulher que dirigia falando ao celular.

Mas dá para elencar uma série de pequenas grosserias muito menos agressivas que um atropelamento. Aquele que fura fila. Que põe a bolsa para almoçar no restaurante para marcar lugar (ainda vou criar coragem e sentar na mesa com a bolsa, só para testar a reação da pessoa). Que grita no meio da rua às quatro da manhã. Que toca o interfone e sai correndo (sim, isso existe até hoje. O espírito da roça não abandona a cidade, e todo mundo parece que ama apertar um botão). Que isso. Que aquilo. E que incomodam sim.

A impressão que fica é a de um esvaziamento constante da delicadeza. Da diminuição do sentido de cortesia, da individualidade suprema exercida em detrimento do respeito ao próximo. Muito provavelmente as professoras dessas criaturas devem ter se esquecido de passar no quadro aquela frase clichê dos meus tempos de escola: "a liberdade de um termina quando começa a do outro". E os pais? Deviam estar ocupados demais para lembrar.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O teste que ninguém faz

Na coluna do lado existe uma caixa de perguntas que posso ou não vir a responder. Como sou uma pessoa solicitadíssima em meu anonimato, as duas questões que recebi até agora foram respondidas. A terceira pergunta é automática do formspring; respondi porque achei interessante. Existem duas outras lá: "Se a sua casa se incendiasse e você pudesse salvar apenas três coisas, quais seriam?", e "Qual é a coisa mais bonita que alguém já fez para você?"; as quais ainda não pensei uma resposta convincente, mas salvaria minhas cachorras.

Ontem, na caixa, um anônimo quis saber de quem era a cama de que gostei. Disse que continua sendo a minha, gosto bastante da cama em que durmo. Inclusive lembrei de que preciso trocar o colchão. E também me perguntei se alguém troca mesmo o colchão periodicamente. Procurando pela internet vi que devemos mudar o colchão, dependendo da marca, em um intervalo de cinco a doze anos. O meu já passa disso, tenho certeza.

Lembrando da série Os Normais, existe um episódio em que a Fernanda Torres resolve pintar o cabelo de louro. Ela pega a bula da tinta, começa a ler e, se você pinta o cabelo sabe, está lá o que ela chama de "teste que ninguém faz". Para ver se a tinta dá alergia. Obviamente a Vani (eu ia contextualizar que era a personagem da Fernanda, mas é dispensável) é daquelas mulheres alérgicas a amônia e fica toda queimada por não ter feito o teste.

Pensando nisso, ajeitei uma pequena lista de coisas que a gente não faz, mas deveria. A gente, no caso, fica sendo eu mesmo. Protetor solar é o primeiro item. Eu não assisti o vídeo do Pedro Bial, portanto nunca lembro de passar. O mesmo para hidratantes, antirrugas (a nova ortografia deixou a palavra péssima) e quaisquer outros cosméticos que não sejam sabonete, creme dental, xampu e condicionador. Como parei de pintar o cabelo, o teste da tinta não se aplica. Mas, shame on me again, fio dental confesso que tenho preguiça da rotina religiosa. Podem gongar e dizer que sou nojento.

Trocar não só o colchão, também o travesseiro. Levar sacola retornável para o supermercado é mais complexo. Eu teria de planejar as compras, e normalmente faço supermercado quando já estou na rua e lembro de algo. Parar de roer as unhas. Fazer a barba mais de uma vez por semana. Cortar o cabelo todo mês. Doar as roupas velhas confortáveis, tirar do armário tudo o que não uso mais. E, principalmente, não ir parecendo um mendigo para o trabalho.

E você, também tem uma lista do que não faz?

Balaio

Uma coisa que nunca aprendi foi dirigir. Na verdade nunca tentei com vontade. Não consigo afirmar que um carro faz ou não falta em minha vida, porque tudo que preciso, hoje, resolvo pelos meios de transporte convencionais: táxi, ônibus, avião e, preferencialmente, a pé.

Pela manhã venho para o trabalho de ônibus, e tenho de vivenciar a maravilhosa experiência coletiva de integração social em uma lata de sardinha. Por poucos e intensos minutos, sou um rapaz de sorte. Ônibus coletivos são úteis, mas nunca consigo desassociar duas cenas. A primeira de quando eu morava no interior e via passar na estrada aqueles caminhões com porcos para o abate. A outra de uma colega de faculdade, dizendo que a coisa mais deprimente é quando o coletivo arranca e todos balançam a cabeça no mesmo ritmo. Reparem: acontece.

Com a chegada da contemporaneidade em BH, surgiram os ônibus com portas no meio. A novidade é tão grande que o povo consegue se acumular perto da porta central, admirados com a possibilidade de descer por ali, fazendo lembrar a época em que eu ia para a rua, lá no interior, quando passava um avião. Aí o que era para se tornar facilidade vira desafio. Para se chegar na parte de trás (entra-se pela porta da frente nos ônibus em BH), é preciso desbravar praticamente a facão uma multidão aglomerada no meio do coletivo.

Hoje, seguindo para o trabalho, reparei outra "novidade". Para mim foi a primeira vez. A porta traseira estava protegida por duas divisórias, criando um corredor, uma pequena baia (na falta de melhor termo), que permite que apenas um passageiro desça por vez. Não sei a finalidade daquilo, talvez evitar que alguém empurre o outro no chão, algo que já quis fazer várias vezes, mas sei que me senti ainda mais animalizado por conta daquela divisória. Fora que ela é extremamente restritiva, alguém com circunferência acima de 100cm (a minha – shame on me) não passa ali sem algum esforço.

A não ser que a prefeitura esteja começando uma campanha contra a obesidade, o sentido principal da divisória na parte de trás deve mesmo ser tornar a viagem cada vez mais emocionante. Afinal, nós, gordinhos, vamos agora preferir ficar pela frente, tornando a barreira humana da porta do meio ainda mais encorpada. E os magrelos que aprendam salto com obstáculos para poder passar. Afinal, para que facilitar, não é verdade?

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Tabagismo

Uma das coisas mais interessantes que se acham nas ruas é a exata contraposição de sentido àquilo que se vivencia no presente momento. Por exemplo quando decidimos parar de fumar. Parar de fumar é inerente ao ser humano; todo mundo vai parar um dia. Ou pelo menos tentar uma, duas ou mais vezes. Até quem nunca fumou vai abandonar o cigarro de alguma forma, em um ato destemido de rompimento com a fase oral. De eliminação da muleta, do "tripé estável". Aliás o ato de fumar está para a humanidade assim como cortar a franja/deixar inteirar está para as mulheres. Quando jovem a gente experimenta de um tudo. Depois, passada a onda, chega-se a um ponto comum, seja ele qual for.

Mas voltemos ao péssimo hábito do cigarro, ou da falta dele. A perspectiva é a mesma. Se você, um dia que seja, resolveu abandonar o cigarro, deve ter reparado como o mundo resolveu fumar exato aquele dia. Até a velhinha da janela, aquela que te olha toda manhã tomando café, parece estar com um cigarrinho na boca. Por outro lado, o dia em que você resolve consumir uma carteira inteira, não aparece uma alma viva com isqueiro ou fósforo, muito menos carregando um cigarro aceso.

Eu parei de fumar e não devo voltar. Tive duas ou três recaídas, a maioria com álcool associado, e vi que não me serve mais aquilo. Peguei chocolate amargo para substituir. Mais calórico que cigarro, mais gostoso que chocolate ao leite. Gosto de aromas e gostos fortes como o bom e velho Marlboro vermelho. Agora aposentados: o cigarro e o caubói da propaganda.

Shades

Eu uso óculos escuros. De grau. Se você tivesse acesso à mala de fotos que guardo embaixo da cama, veria que eu praticamente nasci de óculos. Desde os quatro anos eles estão lá: uma hora com tapa-olho, outra com esparadrapo na lente, e depois só eles, os óculos. Em diversas formas e modelos, porque acho que uma das coisas que mais fiz na vida foi quebrar óculos.

Só que, quando eu era criança, não podia usar óculos escuros. Porque, logicamente, todo mundo tinha óculos de plástico, e eu não enxergava nada com aquela coisa. Então não usava. Daí que fiquei velho e, em algum surto de tirania com a minha tia-avó, pedi para ganhar óculos de grau, como outros quaisquer, mas também uma armação com lentes escuras. E assim é até hoje. A diferença é que agora pago por eles.

Óculos escuros são absurdamente úteis para nos livrar de situações constrangedoras. Quando, por exemplo, o vendedor de balas entra no ônibus. Basta encostar a cabeça no vidro da janela e fim. Não precisa fingir que está dormindo e ele não te incomoda. Ou quando aparece alguma vista interessante no horizonte (entenda como quiser). Óculos escuros, cara de paisagem e fim: estamos todos livres de bolsadas, safanões, "que é que você está olhando?" e tudo mais.

Meus óculos são o meu escudo na jornada de observação das ruas de todo dia.

Sobre o tempo e qualquer tempo

Normalmente quando um ano se inicia a gente pensa em fazer coisas novas. Reviver, recomeçar. Eu, por exemplo, fico mais falante em janeiro e vou-me tornando cada vez mais introspectivo até o fim do ano. É cíclico: um começo de ano é sempre mais produtivo que o fim. Algo completamente psicológico, porque, afinal, a mudança de ano é tão somente um abrir e fechar de olhos.

Mas, como alguém já disse, é absolutamente maravilhosa essa capacidade de se condensar um ciclo, e de, de repente, se ter um novo ano, uma página em branco zero quilômetro para dela fazermos o que bem quisermos. Um blog novo sobre o tempo e a qualquer tempo. Um tempo qualquer. Duas, três vezes ao dia... seguido por semanas de mudez. Porque, no fim, eu sou assim. Inconstante.

Um blog com títulos no lugar de números (novidade para mim, pensar um título). Para eu não me perder mais nas contas, e para não ter ritmo algum. Um blog de hiatos, alternando silêncios e profunda e extrema gritaria. Sem compromissos de escrita, de metas a bater (que continuam), de coerência.

E por que escrever? E por que não?

Certa vez me disseram que tenho a capacidade de transformar assuntos cotidianos em acontecimentos. Também já disseram que sou uma companhia agradável. Talvez por isso. E, muito e, principalmente, para exercitar a minha escrita. Mas sem laços duros, porque, também, amarras esse ano não são muito bem-vindas.

Ao trabalho!