No filme Bonecas Russas, uma das cenas que mais me marcaram acontece nas ruas de São Petersburgo. É praticamente um trecho documental, onde a cidade é vista: com suas placas de sinalização, propagandas, estação de trem. Uma cidade como outra qualquer, só que com todas as coisas escritas, como era de se esperar, em russo. Essa cena me remete à frase que ouvi de uma amiga: "estar sozinho em um lugar desconhecido, no qual ninguém sabe quem é você, é algo extremamente libertador". E, confesso, tenho muita vontade de me perder em um lugar desses, no qual se entende apenas o sinal de trânsito, aquele que vem na linguagem universal das cores. Pare, siga, atenção.
(In)felizmente, desde criança me vejo impedido de ligar para alguém caso estiver perdido na esquina de Walk com Don't walk, em Nova Iorque. O máximo que vou ouvir em resposta é um palavrão. Por opção, não passo mais fome em Paris, já sei pedir uma baguette na boulangerie. Por semelhanças gráficas, devo conseguir me safar convenientemente bem tanto em Madrid quanto em Berlim, apesar de não entender uma palavra nem de espanhol ou de alemão. Em Tóquio, pelo que imagino, tudo deve vir com legenda em inglês. Dos trechos conhecidos para a minha utópica imersão cultural (porque sempre terei a opção Papua Nova Guiné, ou qualquer outro destino exótico em que línguas milenares passam de pai para filho, como o Alto Xingu) sobram a China, o Oriente Médico, a Grécia e, logicamente, a Rússia.
Eu não me aventuraria no Oriente Médio por, juro, amor à vida. À minha vida, claro. Obviamente a Faixa de Gaza não deve ser só o que é mostrado na televisão, deve haver algum tipo de vida humana por lá, e os bebês provavelmente não nascem com o corpo coberto de bombas. Apesar de, convenhamos, o fato de uma cidade se chamar Cabul, praticamente a onomatopeia universal para o som de uma explosão, já soar assustador. É, para mim, uma vivência com baixa prioridade. Dubai não é meu roteiro dos sonhos de novo-rico wannabe. Assim como dispenso os passeios de bugre "com emoção" nas dunas do Nordeste (perdi um primo em um acidente "emocionante"), também dispenso a possibilidade de estar em um lugar em que se come carne de cachorro. Ou, como diz o ditado chinês, onde come-se tudo que tem quatro pernas e não é mesa, tudo que voa e não é avião e tudo que se move na água e não é navio. Se posso dispensar ser alvo de mísseis, declino tranquilamente da possibilidade de ter de experimentar olho de peixe, escorpião, bicho-da-seda, gafanhotos e, claro, cachorro.
Sobram então a Grécia, que me parece mais um roteiro para se fazer sem pressa, de forma agradável e, paradoxalmente, entendendo tudo – entendendo que cada pedrinha ali tem a sua contribuição na formação do nosso pensamento contemporâneo –, e a Rússia. Ou seja, só sobrou a Rússia para me perder (fora aquele país que você pensou, caro leitor, onde falam aquela língua estranhíssima que você vai dizer na caixa de comentários só para mostrar o quanto é inteligente). Um lugar com um alfabeto completamente diferente do meu, impossível de se decifrar sem algum estudo prévio. E ao mesmo tempo urbano. Penso que um dia em uma cidade grande da Rússia (Moscou também deve ter placas com legenda, vamos nos ater a São Petersburgo mesmo) deve ser exatamente como um dia em qualquer cidade do mundo, porém com todas as placas dizendo coisa alguma. Uma vivência possível e tangível de surrealismo. Um sonho acordado.
Ou, ainda, um reencontro com o analfabetismo. Quantas vezes você já se pegou pensando "... e se eu não soubesse tal coisa?"; "... e se eu simplesmente não soubesse para onde ir, o que faria?". São Petersburgo está aí para esclarecer a todas essas dúvidas. Para permitir a vivência da ignorância em estado bruto. Basta um avião para Moscou, e algum tempo de trem. Talvez depois você e eu queiramos estudar russo. Dizem que é fácil, parece ser mesmo. Só que aprender russo, agora, para mim, é fechar de vez a porta mais provável para uma viagem idealizada. É matar um sonho possível. É entender que aquela placa significa "vire à direita", e não "seja feliz aqui". Por isso, e só por isso, não estudo russo. Não pra já.
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2 comentários:
e pelas ruas de BH? quais são as suas lembranças? bjs, amore
perca-se pelas ladeiras da lapa nesse carnaval.
beijos doces
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